Falta de trilhos vai retardar construção de ferrovias

As obras de ferrovias da Valec, que já acumulam um grau de execução sofrível, estão prestes a encarar uma situação ainda pior. Dessa vez, a paralisia total que atinge a estatal federal responsável pela construção de dois grandes projetos de ferrovias do país é resultado de uma realidade dramática: os trilhos da Valec simplesmente acabaram.

Não há, neste momento, uma barra de aço sequer disponível em estoque para fixar sobre os dormentes. Para complicar de vez o cenário, as duas licitações que a Valec acaba de realizar para compra de milhares de toneladas de trilhos foram suspensas, sem previsão de retomada.

A Valec está à frente da construção de um trecho de 600 km da Ferrovia Norte-Sul, que ligará as cidades de Ouro Verde (GO) e Estrela D’Oeste, em São Paulo. Além disso, tem a missão de construir mil km da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), entre os municípios de Ilhéus, no litoral baiano, e Barreiras, no sertão do Estado. Atualmente, os poucos metros de trilhos que a estatal ainda possui estão sendo instalados em pátios logísticos na região de Anápolis, no Estado de Goiás. E só.

A situação crítica foi confirmada ao Valor pelo presidente da Valec, Josias Sampaio Cavalcante, que assumiu o comando da empresa no fim do ano passado. “Realmente estamos em uma sinuca de bico. Precisamos resolver isso o mais rápido possível. Sem trilho, não tem obra. É um momento difícil.”

Apesar de todo o movimento provocado no setor ferroviário pelo governo, que promete conceder 10 mil de quilômetros de malhas novas neste ano, o Brasil não tem e nenhuma fábrica de trilhos. Apesar de ser o maior exportador de minério de ferro do planeta, passa pelo constrangimento de ter que importar 100% desse material. A raiz dos problemas enfrentados pela Valec está nos editais que elaborou para buscar os trilhos fora do país.

Em janeiro, a Valec realizou uma licitação internacional para compra de 95,4 mil toneladas de trilhos para a Norte-Sul. Um único consórcio – formado pela empresa brasileira PNG Brasil Produtos Siderúrgicos e a chinesa Pangang Group – apresentou proposta, vencendo o leilão com a oferta de R$ 320 milhões. O Tribunal de Contas da União (TCU), no entanto, emitiu uma medida cautelar, que suspendeu a licitação. Para o tribunal, há indícios de que o edital restringiu a competição de demais empresas, entre outros problemas técnicos. Tanto a Valec quanto a PNG apresentaram explicações ao tribunal, mas a liminar acabou mantida, para que as avaliações sejam aprofundadas.

A decisão do TCU acabou se refletindo na segunda licitação que a Valec fez na semana passada. O objetivo era comprar 147 mil toneladas de trilhos para serem instalados na Fiol. O pregão da ferrovia baiana foi realizado e a proposta vencedora foi de R$ 477,2 milhões. Novamente, porém, apenas a PNG e a Pangang apareceram para disputar a licitação. Como o edital era praticamente o mesmo daquele utilizado na Norte-Sul, a Valec decidiu, por conta própria, suspender essa segunda compra, até que o mérito do processo seja julgado pelo TCU.

“Temos a humildade de reconhecer quando erramos. Estamos dispostos a alterar o que for preciso para levar as concorrências adiante. Vamos defender nosso ponto de vista sobre os editais, mas não temos compromissos com o erro”, disse Cavalcanti. “Se o TCU entende que o edital restringiu a competitividade, eu mudo o edital. Se ele entende que eu não posso contratar com tal empresa, nós cancelamos a licitação e realizamos outra. O que não posso é ficar sem os trilhos”, afirmou o presidente da Valec.

Uma série de reuniões com empreiteiras foi realizada no mês passado pelo ministro dos Transportes, Paulo Passos, ao lado de Cavalcanti. O governo selou um “pacto” com as construtoras que executam as obras da Norte-Sul e da Fiol. As construtoras garantiram, na ocasião, que fariam esforço redobrado para retomar o cronograma das duas ferrovias, as quais já acumulam anos de atraso. Agora, o pedido deve ser exatamente o inverso: retardem as operações, porque os trilhos sumiram.

Cavalcanti diz que, no momento, já há quilômetros de dormentes de concreto que já foram lançados no traçado das ferrovias, mas não há barras de aço para pôr em cima deles. “Temos que parar com isso. Não faz sentido sair lançando mais dormente”, diz. O presidente da Valec admite que a empresa já está revendo o texto do edital. Se as compras dos trilhos não estivessem suspensas, a Valec receberia as barras de aço só daqui a três meses, o que já comprometeria o cronograma.

Agora, na possibilidade mais otimista – que significa a deliberação imediata do caso pelo TCU e a realização de novas licitações – os trilhos só chegariam no fim do ano. Isso, claro, se a empresa que venceu as duas propostas não decidir recorrer à Justiça.

Importadora está na polêmica sobre editais da Valec

No centro da confusão que envolve os editais de compra de trilhos da Valec está a empresa PNG Brasil Produtos Siderúrgicos. Nos dois leilões realizados pela estatal, a PNG, que é uma importadora, foi a única companhia a apresentar propostas para venda de trilhos. Para isso, ela fez um consórcio com a companhia chinesa Pangang Group International Economic & Trading. Para a Fiol, o consórcio fez oferta de R$ 477,2 milhões para fornecer os trilhos. No caso da Norte-Sul, apresentou proposta de R$ 320 milhões. A polêmica se concentra na origem da PNG.

A empresa tem uma relação umbilical com a Distribuidora de Manufaturados Ltda (Dismaf), companhia que, há dois anos, venceu uma licitação milionária de trilhos da Valec. O leilão, no entanto, foi parar na Justiça por conta de suposto envolvimento da Dismaf em esquemas de corrupção nos Correios. No final das contas, a Valec foi autorizada a realizar outra licitação e a Dismaf, juntamente com seus donos – Alexandre Pantazis e Basile Pantazis – foram impedidos de participar de novos contratos com a ECT.

O interesse pelos negócios da Valec, no entanto, não desapareceu. Para entrar nas concorrências e evitar desgaste por conta do histórico já registrado pela Dismaf, Alexandre e Basile decidiram colocar os filhos à frente de uma nova operação: a PNG. Dessa forma, Karine Pantazis e George Pantazis assumiram o comando da nova empresa para participar da licitação.

O departamento jurídico da Valec, disse o diretor-presidente da estatal, Josias Sampaio Cavalcante, analisou possíveis restrições que a situação poderia impor à assinatura do contrato com a PNG. “Juridicamente, a PNG não tem nenhum impedimento legal que a afaste das concorrências da Valec ou de qualquer outra empresa pública. Não temos como impedir a empresa de participar da licitação”, afirmou.

Em seu parecer preliminar, o relator do caso no Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Walton Alencar Rodrigues, fez uma série de apontamentos sobre problemas técnicos do edital da Valec. Rodrigues não baseou sua decisão de emitir medida cautelar na relação que a PNG tem com a Dismaf, mas não deixou de relatar o histórico que liga as duas empresas.

Procurada pelo Valor, a PNG informou, por meio de sua assessoria de comunicação, que vai aguardar os desdobramentos da decisão do órgão de controle. “Nesse momento, trata-se de uma situação que precisa ser resolvida entre a Valec e o TCU quanto a entendimentos técnicos do edital. Não há nada de errado com a PNG. Não se pode proibir uma família de negociar com o governo”, informou a empresa.

A despeito de possíveis problemas no texto do edital, a suspeita do TCU sobre restrição à competitividade nas licitações da Valec encontra respaldo na própria situação mundial do mercado ferroviário. Juntos, os leilões da Valec somam uma fortuna de R$ 800 milhões em trilhos, um negócio grande o suficiente para atrair o interesse de muitos fabricantes mundiais desses componentes, localizados em diversos países da Europa e no Japão. Em relação à ausência de outros interessados, além da companhia chinesa associada à PNG, Cavalcante disse que o edital foi amplamente divulgado entre os principais países e fabricantes de trilhos. “Propaganda não faltou”, afirmou.

No ano passado, a Pangang Group foi acusada pelo governo dos Estados Unidos de ter ligação com espionagem e roubo de segredos comerciais. Um júri federal de San Francisco acusou pessoas ligadas à Pangang de ter roubado o conhecimento tecnológico da companhia DuPont para produção de tintas, com o propósito de levá-las para a China.

Fonte: Valor Econômico, 26/02/2013

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