O dedilhado do violão começa e a sequência de acordes é quase que automaticamente reconhecível. A música e “Still Loving You” dos Scorpions, banda alemã que já tocou até em trilha sonora de novela. Ouvidos mais atentos e você percebe que não é qualquer som ambiente. “Tem alguém tocando ao vivo?”, pergunta-se. Deve ter um monte de gente tocando, aliás, já que conforme se aproxima, é possível distinguir todos os instrumentos. Guitarra, baixo, bateria, teclado… tudo soando daquele jeito “orgânico” como apenas a boa música executada ao vivo consegue soar. Você começa a se aproximar e vê um grupo de marmanjos uniformizados em cima do palco. Estranha, afinal você está em pleno metrô de São Paulo, no meio de uma rotina pouco conhecida por experiências sensoriais agradáveis como esta. Confunde-se ainda mais quando finalmente se aproxima de um palco e vê que sobre ele estão aqueles rapazes de uniformes pretos. Normalmente sem rosto no meio da multidão, executando tarefas pouco agradáveis e ajudando a orientar o fluxo da multidão, eles são os famosos “guardinhas” do metrô. E agora estão numa função bem diferente. Sem que eles precisem gritar ou orientar, todo mundo parou para ouvir a música e acompanhar a apresentação. É a BSM – Banda dos Seguranças do Metrô, tocando em pleno horário de pico, no meio da Estação Brás, uma das mais movimentadas e cheias de gente nervosa fazendo baldeação.
Enquanto eles continuam desfilando um repertório que tem Queen, Creedence, Steppenwolf e Michael Jackson, você começa a pensar que aquilo tudo é lindamente estranho. Não combina com população insatisfeita usando um serviço público. Não combina com funcionalismo público no Brasil. É um sopro de ânimo e de alívio naquela pequena parte da rotina de todo mundo.
Outra música chega ao primeiro refrão e você nem percebe que já está “viajando”, filosofando sobre a situação toda. Começa a pensar naquele grupo coral que viu uma vez. Você estava em um evento “chato”, ouvindo alguém falar sobre gestão de recursos humanos na administração pública e o coral salvou o evento. Era um coral formado exclusivamente por servidores do Tribunal de Contas do Município de São Paulo. Detentores de uma função pública das mais chatas (fiscalizar outros órgãos públicos), eles conseguem fugir da rotina decorando e aprendendo a cantar letras de Tom Jobim, Vinicius e Toquinho. Param para respirar e se relacionar com os colegas de trabalho de uma outra maneira. Será que voltam mais felizes e “mais leves” para trabalhar no outro dia? Gosto de acreditar que sim.
Você chega em casa e lembra daqueles guardas civis da Prefeitura de São Paulo que montaram um grupo de corrida de rua. Levam tão a sério a atividade paralela e os treinamentos que sempre tem algum guarda nos pódios daquelas provas menos conhecidas que acontecem aos domingos de manhã. Pesquisa um pouquinho e acaba conhecendo a história de um grupo de motoristas e cobradores que participam de um grupo de teatro. São funcionários que trabalham no sistema de transporte público municipal de Porto Alegre. Um texto pequeno como este certamente não consegue dar conta de todas as experiências parecidas que devem existir nas Prefeituras, Câmaras Municipais e outros órgãos públicos por aí. Não tem problema, já deu para entender.
Um ex-chefe, figura política das mais inspiradoras, hoje muito atarefado com a campanha presidencial, costumava citar repetidas vezes aquela frase do Mandela. É aquela que fala do poder da arte, do esporte e da música. São atividades que também podem ajudar a humanizar o serviço público brasileiro, transformando os “recursos humanos” em humanos que falam, sentem, choram, cansam, dançam, tocam e até cantam. Podem ajudar a motivar de um jeito que dinheiro e plano de carreira nenhum motivam. Podem ajudá-los a perceber que passam muito tempo nos próprios trabalhos, executando tarefas e viabilizando serviços públicos importantes, mas que se não tomarem o cuidado de descobrir espaços agradáveis de convivência como estes, tem muito chefe que nunca vai perceber que eles precisam.
Amanhã, 28 de agosto de 2014, às 18h, a Banda dos Seguranças do Metrô se apresenta novamente, desta vez na Estação Largo Treze. Se eu estivesse por lá, juro que não ficaria apenas enchendo o saco e gritando “toca Raul”. Ia mandar um bilhetinho com dois pedidos. O primeiro pedido é que tocassem Bon Jovi. O timbre da voz do cara parece perfeito para isso. O segundo pedido seria para que eles não parassem com o projeto e continuassem servindo de exemplo para outros brasileiros que estão sendo funcionários públicos neste momento.
Fonte: Estado de S. Paulo, 27/08/2014