Ferrovia Norte-Sul busca carga para se tornar rentável

O cenário é de primeiro mundo. Na tela da sala refrigerada surgem dois vagões. Um clique e, do lado de fora, comportas despejam 100 toneladas de grão em cada um deles. Em apenas sete minutos. Sem manobras ou montagem, a composição de 80 vagões fica pronta para partir em seis horas – um trabalho que antes levava cinco dias.

Locomotivas novas com potência de 4.400 cavalos-vapor (quatro vezes a de uma Ferrari na Fórmula 1) percorrem linhas de bitola larga (1,6 m entre a parte interna dos trilhos, o que permite levar até 30% mais carga) e rodar a mais velocidade chegam em três dias ao porto final. No trecho hoje em operação da Ferrovia Norte Sul, quase nada lembra os 30 anos de fraude em licitações, superfaturamento, atrasos, desperdício e abandono.

A falta de planejamento, no entanto, ainda faz com que a espinha dorsal do transporte de cargas no Brasil não funcione como deveria.

Com estrutura pronta para transportar até 9 milhões de toneladas por ano, a Norte-Sul tem conseguido explorar cerca da metade desse potencial: não há vias que levem a soja e o milho das principais regiões produtoras até a linha férrea. Além do investimento subutilizado da VLI, empresa de logística que administra concessões de ferrovias, entre elas a Norte-Sul, o País como um todo perde receitas em consequência dessas deficiências.

Sem conseguir exportar pelos portos do Norte do País, Mato Grosso (líder nacional de produção, com 30% dos grãos colhidos) precisa mandar a produção para os portos do Sul e do Sudeste, a um custo muito mais alto.

Com base nos dados mais recentes disponíveis de origem e destino das exportações (de 2015), o especialista Luiz Antonio Fayet, consultor da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), estima que Mato Grosso gaste com transporte até US$ 40 a mais por tonelada de soja que vende a US$ 400.

Por ano, a diferença supera US$ 1,2 bilhão, e a tendência é de alta nos custos. Mesmo já sendo o maior produtor de soja e o vice-líder em milho, entre os três líderes globais (Brasil, EUA e Argentina), apenas o Brasil tem como ampliar fronteiras agrícolas – e sem desmatar. São três possibilidades simultâneas, afirma Gustavo Spadotti Castro, analista do Grupo de Inteligência Territorial Estratégica (Gite), da Embrapa. Elevar a produtividade com tecnologia, tirar mais safras por ano e ocupar áreas degradadas por pastagens.

Nesse terceiro item, dar vazão à ferrovia Norte-Sul é fundamental: cortar o custo de transporte torna viável ocupar áreas menos férteis do Centro-Oeste brasileiro.

No Tocantins, principal área de influência da ferrovia, há cerca de 5.000 km2 de pastagens degradadas (pouco menos do que a área do Distrito Federal) que poderiam ser usadas para o plantio. Nos cálculos feitos por Spadotti, resolver o gargalo logístico elevaria em 35% a produtividade do agronegócio brasileiro. “É o dobro do que seria obtido se fossem implementadas todas as tecnologias já desenvolvidas pela Embrapa e ainda não usadas.”

Governo desenha rotas mais eficientes para escoar a produção

A pedido do governo, o Gite desenhou as rotas mais eficientes para escoar a produção agrícola por “bacias logísticas”. Também determinou oito obras prioritárias para desviar para o Norte o volume de produção que deveria estar sendo exportado por lá. Entre elas está a BR-080, vista como fundamental para fazer chegar grãos do Leste de Mato Grosso até a Norte-Sul. Faltam 200 quilômetros entre Ribeirão Cascalheira (MT) e Luiz Alves (GO), e uma ponte no rio Araguaia para que a estrada alcance o trecho central da ferrovia, que já tem as linhas férreas prontas e leilão marcado para fevereiro. Mas a rodovia ainda não tem licenças ambiental e indígena. Ainda assim, é a opção mais viável para otimizar a Norte-Sul.

A Fico, ferrovia projetada para conectar a linha com Lucas do Rio Verde (no Centro de Mato-Grosso), não ficaria pronta em menos de 15 anos. Priorizar essas oito obras, no entanto, pode não ser suficiente, alerta Spadotti. “O Brasil tem superado as mais otimistas previsões.” Nas estimativas da Embrapa, resolvidos os gargalos de acesso, outro já terá se formado se os portos não estiverem preparados para a alta das exportações.

Enquanto isso, a VLI procura alternativas próprias para “suar os ativos” que ligam Porto Nacional (TO) ao porto de Itaqui, em São Luís (MA), e custaram R$ 1,7 bilhão em investimentos, segundo Fabiano Lorenzi, diretor comercial e de novos negócios. Um eixo foi a travessia de caminhões por balsa em Caseara (TO), que começou a funcionar em abril deste ano. Viagens que levavam 20 horas passaram a levar duas, e cerca de 1,2 mil bitrens já pegaram a barcaça para chegar à ferrovia, elevando em 7% o volume recebido do Leste e Nordeste de Mato Grosso e do Sul do Pará.

A empresa tenta atrair produtores, como a cooperativa Frísia, que em 2106 abriu sua primeira unidade fora do Paraná, em Paraíso de Tocantins. Três fatores embasaram a escolha, segundo Emerson Moura, superintendente da Frísia: logística (ferrovia e posição central no País), valor da terra (mais baixo) e fraca tradição cooperativista (que dá oportunidades de negócios).

Com mais de 30 cooperados e 54 mil toneladas de grãos colhidas, a Frísia vai antecipar em dois anos a duplicação de seus armazéns. Produção e embarques são maiores do que a capacidade dos novos portos mesmo com novos portos e recordes sucessivos de embarque na região mais ao Norte do País, o Brasil pode levar até 20 anos para atender à demanda por terminais de exportação, afirma o consultor Luiz Antonio Fayet. Em 2014, o deficit de capacidade de embarque era de 64 milhões de toneladas: 800 mil navios graneleiros carregados, o equivalente ao volume de soja que o Brasil exportou de janeiro a agosto. A estrutura cresceu, mas zerar o gargalo passado não basta, porque a demanda mundial por grãos cresce 5 milhões de toneladas/ano.

Para a Embrapa, se forem concluídas até 2025, as oito obras prioritárias para otimizar a saída de grãos, o deficit de embarque será de 15 milhões de toneladas no Norte do País (portos de Itacoatiara/Manaus (MA), Santarém e Belém/Barcarena (PA), Santana (AP) e São Luís). O problema só não é maior, diz o analista da Embrapa Gustavo Spadotti, porque aumentar a capacidade de exportação dos portos é mais fácil que otimizar o escoamento das zonas produtoras até lá.

“Para o porto, se há demanda, o retorno é garantido, o que torna mais fácil e rápido fazer o investimento.” Em São Luís, onde desemboca o corredor ferroviário de 1,3 mil quilômetros operado pela VLI, a companhia tem duas operações, o TPSL (Terminal Portuário São Luís), na área privada da Vale, e um berço (onde o navio atraca) na área pública do Tegram.

O sistema precisa ficar conectado para aproveitar imediatamente novas oportunidades de demanda, diz Fabiano Lorenzi, diretor de novos negócios da VLI. Foram 3 milhões de toneladas de grãos embarcadas em 2016. Neste ano, antes do final da safra, a ferrovia já despejou em Itaqui 3,8 milhões de toneladas de soja e 550 mil toneladas de milho, cuja safra está começando.

Formada em 2014 por Vale (30%), Mitsui (20%), FI-FGTS (16%) e Brookfield (20%), a VLI consegue embarcar em seus terminais entre 4,5 milhões e 5 milhões toneladas de grãos por mês – o equivalente a 16 navios cheios. No Tegram, o embarque de grãos já bateu 5 milhões de toneladas em junho, relata Ted Lago, presidente da Emap, empresa pública maranhense que administra o porto de Itaqui.

O ano deve fechar com recorde de 7 milhões, e a capacidade do terminal deve dobrar para 14 milhões de toneladas em 2019, quando estiver concluída a fase 2. Em 2021, um novo acesso ferroviário deverá receber 20 milhões de toneladas, com novos terminais para celulose, fertilizantes e para o embarque de contêineres.

O movimento acontece também de fora para dentro do País. De São Luís, as mesmas ferrovias e estradas que trazem soja levam combustível para sete estados do Nordeste e do Centro-Oeste. Os planos são aproveitar as rotas de volta com fertilizantes, impulsionados pela expansão da área plantada. Os balanços da Emap mostram lucro de R$ 43 milhões em 2016. Neste ano, até agosto, a margem Ebitda (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) foi de 43%, o que mostra alta capacidade de investimento com recursos próprios. A estratégia da empresa pública é aproveitar os recursos da exportação de grãos para sofisticar a cadeia de produção de alimentos no Maranhão, atraindo frigoríficos, abatedouros e indústrias de alimentos.

Segundo Lago, o objetivo é tornar o estado grande produtor de proteína. “Se fôssemos olhar só para o retorno do acionista, provavelmente não investiríamos em um terminal refrigerado para contêineres. Mas para uma empresa pública isso faz sentido.”

O fluxo de milho e soja (que alimentam os animais) e a estrutura do porto já atraíram produtores de frango, suínos e lácteos, como os grupos Piracanjuba, Frango Americano, Notaro (Frango Natto), Ceará Alimentos e Agronor. O próximo passo será a produção de camarão, segundo o secretário de Agricultura, Márcio Honaiser.

O estado, que tem 70% de sua costa propícia à criação do crustáceo, vai receber um projeto do grupo Bomar que usa menos animais por área, o que leva a menos doenças, custo mais baixo e produtos mais competitivos. Segundo Honaiser, o porto de Itaqui deve começar a exportar carne processada vinda de Goiás e Tocantins, o que pode servir de estímulo à bovinocultura e a indústria de carne.

Mais difícil deve ser desenvolver a fruticultura, um dos calcanhares de Aquiles do Maranhão. Há frustração com o fato de que o Estado “importa” vegetais de vizinhos muito mais secos, como o Rio Grande no Norte. Regularização fundiária e recuperação da infraestrutura, porém, devem atrasar a colheita de frutas no Maranhão, segundo o secretário da Agricultura.

O presidente da Emap faz cálculos para esse dia. “A carga mais valiosa que embarca em Itaqui hoje é o cobre: a tonelada custa US$ 4,7 mil. Sabe quanto custa uma tonelada de castanha de caju? US$ 5 mil”, diz Ted Lago, imaginando o dia em que embarcará contêineres do produto.

Fonte: Jornal do Comércio, 11/10/2017

4 comentários em “Ferrovia Norte-Sul busca carga para se tornar rentável”

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