A extensão da malha ferroviária da Rumo no Estado de Mato Grosso, lançada recentemente pelo governo estadual, não é a única iniciativa do gênero no setor. Outros Estados têm aprovado leis e elaborado propostas para viabilizar novas ferrovias locais. O movimento, porém, tem gerado algumas dúvidas sobre a segurança jurídica dos projetos, possíveis conflitos com a União e mesmo quanto à viabilidade econômica de algumas das iniciativas.
O Estado de Minas Gerais já mapeou 40 possíveis trechos ferroviários. Hoje, três rotas estão sendo priorizadas: o trecho Lavras-Varginha; o Nova Lima-Rio Acima; e o Ouro Preto-Mariana.
O Paraná também tem avançado nesse sentido. O governo aprovou recentemente a legislação que permitirá a construção de ramais privados no Estado, com objetivo de aumentar a capilaridade da Nova Ferroeste, uma subconcessão que está sendo estruturada em parceria com a União. Há ainda o caso do Pará, que planeja criar uma ferrovia estadual entre Bom Jesus do Tocantins e Barcarena – o projeto, porém, ainda está em estudo.
A discussão sobre as linhas estaduais ganhou destaque nas últimas semanas, com o projeto no Mato Grosso. O Estado abriu um chamamento público para construir a extensão da Malha Norte, da Rumo, que chega até Rondonópolis. A ideia é ampliar a rota até Cuiabá e Lucas do Rio Verde, em uma obra de R$ 12 bilhões.
A extensão é um projeto antigo da Rumo. A empresa vinha negociando a obra com o Ministério da Infraestrutura, mas houve divergências nas conversas. Diante da demora, o Estado decidiu viabilizar o projeto independentemente da União. A proposta é que a linha seja construída em regime de autorização, e não de concessão – ou seja, a estrutura será privada, e o Estado terá função apenas de fiscalização, mas sem participação na tomada de riscos ou na alocação de recursos.
Esse formato foi possibilitado por uma lei estadual, aprovada no início do ano no Mato Grosso. Outros Estados interessados em fazer projetos locais também têm elaborado legislação parecida, que permite o regime de autorização. O próprio governo federal tenta aprovar, no Congresso Nacional, uma lei nesse sentido, mas até agora sem êxito. Diante da demora na tramitação e do avanço das legislações estaduais, o governo prepara uma Medida Provisória, para acelerar o processo.
“O movimento dos Estados demonstra claramente que quem está na ponta, no dia a dia, tem uma noção de urgência para os projetos diferente da do governo federal”, afirma o especialista no setor Bernardo Figueiredo, ex-diretor-geral da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres). “Além disso, muitas vezes os Estados conseguem aprovar leis com mais rapidez”, diz.
No entanto, foram levantadas dúvidas sobre a segurança jurídica dos projetos. Para analistas, está claro o direito constitucional dos Estados de lançar ferrovias locais. Porém, também são apontados alguns questionamentos. Entre eles: Como funcionará a conexão entre as malhas estaduais e federais? Qual o limite da competência estadual para ditar regras sobre, por exemplo, segurança nas vias? Caso uma nova linha estadual gere impacto de demanda em uma concessão federal, quem é responsável pelo reequilíbrio do contrato existente? Para uma fonte do setor, que pediu anonimato, o arranjo interfederativo ainda precisa ser melhor esclarecido, para evitar embates.
Procurado, o Ministério de Infraestrutura diz que não vê empecilhos e não se opõe ao avanço de leis e projetos estaduais. Porém, [a pasta] entende que é necessária “uma legislação federal para promover segurança jurídica e pacificar entendimentos sobre diversos pontos em esfera nacional”, afirma. Essas temas deverão ser tratados na MP em elaboração pelo governo. Questionado sobre possíveis medidas para centralizar a decisão sobre os projetos locais, o ministério diz que os detalhes estão em estudo.
Para o secretário de Infraestrutura em Minas Gerais, Fernando Marcato, não há qualquer dúvida regulatória sobre os projetos dentro do Estado. “É a mesma lógica das estradas estaduais”, diz. O único ponto de atenção no arranjo, para ele, é garantir que as malhas federais de fato deem acesso à carga de terceiros, que deverá vir dos novos ramais.
Para além das questões regulatórias, outro questionamento é sobre a própria viabilidade econômica de algumas das linhas estaduais, principalmente as que teriam que ser construídas do zero – pois o volume de investimento e os desafios de engenharia e licenciamento são maiores.
Para Rafael Vanzella, sócio do Machado Meyer, o modelo de autorização, em que o Estado não compartilha dos riscos do projeto, torna ainda mais difícil a viabilidade. “Há situações em que faz sentido. Mas já é difícil tirar do papel ferrovias por meio de concessão. No modelo em que o privado assume todo o risco, fica ainda mais complexo”, afirma.
O Pará, por exemplo, foi o primeiro Estado a aprovar uma lei que permite as ferrovias privadas. Porém, o projeto de construir uma linha entre Bom Jesus do Tocantins e o porto de Vila do Conde, em Barecarena, avançou pouco. O Estado ainda avalia os estudos ambientais do projeto. Questionado sobre o interesse privado, o governo não respondeu.
O Paraná também tem um projeto bastante ambicioso, que está sendo estruturado em parceria com a União e com uma modelagem diferente. O plano é fazer a Nova Ferroeste, que será uma extensão da atual Ferroeste – a malha é federal, mas foi concedida ao Estado que, por sua vez, quer fazer uma subconcessão para ampliar o corredor. O objetivo é conectar o Mato Grosso do Sul até o Porto de Paranaguá. O volume de investimentos total é bastante volumoso: deve chegar a R$ 30 bilhões, segundo Luiz Henrique Fagundes, presidente da Ferroeste.
Os estudos do projeto estão sendo finalizados, para iniciar um “roadshow” com interessados em outubro. A meta é fazer as audiências públicas em janeiro e, o leilão, até abril de 2022. “É um prazo apertado, mas viável”, diz.
Em paralelo, o Paraná também prevê a construção de linhas privadas menores no Estado, que poderão ser construídas em regime de autorização – a lei que prevê o modelo foi aprovada recentemente. A ideia é que os ramais “alimentem” a Ferroeste.
Para Figueiredo, apesar do potencial das ferrovias locais, dificilmente será possível viabilizar projetos estruturantes, que cortam vários Estados, sem que haja acordo com a União, porque havia muito entrave jurídico. “Poderia até se fazer um consórcio de Estados. Mas o ideal é que haja uma articulação e um consenso com a legislação federal, e não regulações paralelas”, afirma ele.
Fonte: valor.globo.com, 09/03/2021
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