Trechos ferroviários sem tráfego

A devolução de trechos ferroviários por parte das concessionárias deve ganhar novos contornos após uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), sob a relatoria do ministro Bruno Dantas. O objetivo da Corte foi identificar as falhas existentes no processo atual e sugerir melhorias regulatórias nas etapas que envolvem esse tipo de inciativa. As recomendações foram dirigidas, no fim de julho, ao Ministério da Infraestrutura, à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).

O tema é sensível no setor ferroviário. Dos 29.878 km de extensão total da malha brasileira, 7.076 km de ferrovias concedidas no país (24%) não apresentam qualquer fluxo de transporte; e 18.554 km (64%) se encontram ociosos, ou seja, menos de 30% da capacidade instalada é utilizada para o transporte de carga nesses trechos. Os dados são da ANTT, baseados na Declaração de Rede de 2020 (cujas informações são repassadas pelas próprias concessionárias), e foram citados no relatório do TCU.

Não foram só esses números que motivaram a auditoria do Tribunal, mas também a proximidade das renovações antecipadas dos contratos de concessão da Ferrovia Centro-Atlântica, operada pela VLI, e da Rumo Malha Sul. Ambas, de acordo com dados fornecidos pelo TCU, apresentam percentuais elevados de trechos inoperantes ou ociosos – 75,8% de 7.860 km para a primeira, e 77,1% de 7.223 km para a segunda. Em função disso, espera-se que haja um número significativo de devoluções nesses processos de prorrogação. No caso da FCA, o relatório do Tribunal expõe o volume que deve entrar em devolução com o termo aditivo: 1.751 km. O processo de renovação da FCA encontra-se hoje em análise na ANTT e o da Malha Sul já teve sua qualificação aprovada no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do governo federal.

Fragilidades

A área técnica do TCU – representada pela Secretaria e Fiscalização de Infraestrutura Portuária e Ferroviária (Seinfra Porto-Ferrovia) – encontrou uma série de fragilidades no procedimento de devolução de trechos ferroviários em vigor hoje pela ANTT. Antes da edição do Novo Marco das Ferrovias, no fim do ano passado, a agência tinha em mãos quatro normas que regiam esse processo: o decreto 1.832/1996, que trata do Regulamento dos Transportes Ferroviários; a Resolução 5.945/2021 da ANTT; o primeiro termo aditivo ao acordo de cooperação técnica firmado entre a ANTT e o Dnit; e a instrução normativa 31/2020 do Dnit.

“Essas normas não consideravam a estrutura de governança como um todo, isto é, a definição de todos os atores envolvidos e suas atribuições, a exemplo da falta de previsão de atuação do Ministério da Infraestrutura. O novo marco das ferrovias, por sua vez, não alterou essa constatação, pois a lei estabeleceu somente regras gerais para a devolução”, explica o ministro relator do TCU, Bruno Dantas, em entrevista para a Revista Ferroviária.

As fragilidades que acabaram não sendo superadas com o novo marco legal, segundo ele, foram a ausência de garantia de duração do processo; falta de previsão da participação do Ministério da Infraestrutura e de participação social no procedimento; e a análise da destinação de trechos a serem devolvidos que ainda acontece desassociada do processo de devolução – de acordo com a área técnica do TCU, isso aumenta o risco de deterioração das linhas e de seu futuro reaproveitamento.

O novo marco legal chegou a estipular que o pedido de desativação de linhas por parte da concessionária deverá, a partir de agora, ser acompanhado de estudo técnico disponibilizado pela própria operadora, indicando as alternativas de destinação que poderão ser aplicadas nos trechos. Mesmo assim, a Seinfra avaliou que existe um risco: “Ainda que o concessionário ofereça estudo com opções viáveis, permanece o risco de abandono ou indefinição caso o processo de devolução não culmine em solução formalizada a tempo pelo poder concedente, a quem cabe a palavra final a respeito”, diz o relatório, recomendando que a solução destinada ao trecho seja definida antes de o mesmo ser devolvido.

A Seinfra citou dois exemplos que demonstram, segundo ela, a importância de se ter um processo estruturado de devolução de trechos ferroviários. O primeiro deles diz respeito ao caso da FCA, que devolveu à União, em 2019, 740 km de linhas. O valor de indenização (fechada em R$ 1,2 bilhão), de acordo com o Tribunal, não foi calculada mediante metodologia previamente definida. O pagamento por parte da concessionária foi estipulado à época em 60 parcelas, que começaram a ser cobradas a partir de janeiro de 2020. Além disso, como a avaliação de destinação dos trechos é iniciada somente após a conclusão do processo de devolução, as linhas ficaram expostas à degradação, uma vez que o Dnit não tem, segundo o órgão, condições financeiras e gerenciais para efetuar a manutenção da malha ferroviária.

 

TCU quer participação do MInfra no processo de devolução de trechos
TCU quer participação do MInfra no processo de devolução de trechos

O segundo exemplo mencionado pelo TCU é o da Malha Paulista, que devolveu três linhas no âmbito da renovação do seu contrato, em 2020: Varginha, Piracicaba e Cajati, que somam juntos 280,5 km. Os valores estimados de indenização foram considerados na modelagem econômica do novo contrato, porém a avaliação foi feita sem a participação do Dnit e sem o levantamento dos passivos existentes.

“O caso da Malha Paulista é bastante emblemático, pois além de não observar os procedimentos normatizados para efetivar a devolução, já houve anuência do poder concedente quanto à devolução dos trechos, antes de o mesmo iniciar qualquer procedimento para sua realocação ou erradicação. Isso pode trazer prejuízos ao erário se o patrimônio não tiver destinação apropriada e tempestiva”, completa o relatório do TCU.

Pontos inéditos

A Lei 14.273/21, que trata do novo marco legal das ferrovias, dispõe de uma seção específica para tratar das desativações e devoluções de ramais a pedido das concessionárias e também prevê algo inédito: a possibilidade de o poder concedente iniciar um processo de chamamento público para buscar interessados em trechos concessionados que estejam ociosos. Até então, os pedidos de devolução estavam facultados apenas às concessionárias.

trechos devolvidos

Outro ponto que a nova lei trouxe foi o estabelecimento de um critério de avaliação de trechos antieconômicos. Pela legislação, a devolução de linhas passou a ser permitida mediante dois motivos: inexistência de tráfego comercial na linha nos últimos quatro anos; e operação comprovadamente antieconômica, motivada pela extinção ou esgotamento das fontes da carga para o trecho. O novo marco exclui, portanto, a possibilidade de as concessionárias apresentarem pedido de devolução em razão de um trecho dispor de baixa atratividade comercial ou de eventual prejuízo financeiro.

Em seu relatório, o Tribunal julgou importante a participação do MInfra no processo de devolução. Atualmente, o poder concedente não tem “a obrigação” de avaliar previamente os pedidos das concessionárias nesse âmbito. “Sob o ponto de vista de impacto na política pública, o ministério não pode ser substituído pela ANTT ou pelo DNIT no processo de devolução de trechos por ter papel crucial na análise de possível impacto sistêmico em razão de eventual cisão de trechos”, aponta o relatório do TCU. Outra questão deixada de fora do marco legal foi a ausência de previsão de participação social nos processos. Quanto a isso, a Seinfra recomendou ampliar esses mecanismos, por meio de audiências públicas ou outra forma de interação efetiva com a sociedade.

Procurada, a ANTT disse que analisará todas as questões apontadas pelo TCU “e se manifestará perante à Corte”. A agência não informou prazos.

Estudo prévio

Paralelamente à auditoria que estava sendo feita pelo TCU, o MInfra contratou a elaboração de um estudo que propusesse uma nova metodologia para o processo de devolução de trechos ferroviários. O documento, entregue em março deste ano, foi desenvolvido pela Sysfer Consultoria e Sistemas, e financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). “O MInfra montou uma espécie de escritório de debate, que envolveu profissionais do próprio ministério, do Dnit e da ANTT. Sempre com a supervisão do contratante que era o BID”, explica Bento Lima, diretor da Sysfer e que esteve à frente do trabalho.

O relatório foi, inclusive, objeto de interesse da área técnica do TCU, afirma Lima. “Fomos procurados pelos técnicos do Tribunal no início deste ano, para relatarmos o que estávamos fazendo. No fim das contas, o relatório do órgão foi bastante similar às propostas que estavam contidas em nosso estudo, a exemplo da questão da antieconomicidade e dos pontos relativos aos cálculos de indenização”.

Com relação à análise de trechos antieconômicos, o estudo da Sysfer propôs que a avaliação não esteja apenas condicionada ao ponto de vista da concessionária. “A empresa apresenta para ANTT o pedido porque o trecho é antieconômico para ela. Propusemos, paralelamente a isso, que seja analisada a antieconomicidade da linha também para a sociedade, pois trata-se de um serviço público. A sugestão é que esse tipo de estudo seja obrigatório e que avalie todos os artefatos”, diz Lima, que estima que nos próximos anos sejam devolvidos à União cerca de 4,5 mil km de malha ferroviária. Segundo ele, desde a concessão das ferrovias, aproximadamente 1,5 mil km já foram devolvidos pelas operadoras.

O relatório da Sysfer contemplou ainda uma metodologia que baseia as alternativas de reutilização de trechos devolvidos. Lima ressalta que grande parte da malha sem tráfego hoje no Brasil poderia ser reativada como shortline. Em segundo lugar em termos de possibilidades está a operação de trens turísticos. Entre as opções avaliadas estão também o uso da linha para transporte urbano ou como parte de um projeto de ferrovia estruturante.

Para o uso especificamente como shortline, Lima lembra que é preciso ter aprovada uma regulamentação específica para esse tipo de modelagem. “Os parâmetros de operação e de segurança nas malhas concedidas são muito rígidos. Numa shortline, normas técnicas em relação a trilhos, dormentes e velocidade de trens, podem ser abrandadas, por exemplo, resultando em custos mais baixos e viabilidade para a operação privada”, explica o especialista, acrescentando: “Fala-se muito em shortline no Brasil, mas a primeira coisa que precisa ser feita é uma regulação própria para isso”.

Devolução no Sul

Na carteira da Sysfer existe também um contrato em andamento com a Rumo Malha Sul, para estudos de identificação de trechos antieconômicos naquela ferrovia. Para esse trabalho, a consultora tem utilizado a metodologia que formulou para o MInfra. “Avaliamos, por exemplo, que na linha fronteira com o Uruguai, em Livramento, no Rio Grande do Sul, existe uma possibilidade de operação turística, que inclusive está sendo implementada com a ajuda da Rumo”, informa. Na Malha Sul, a estimativa é que a devolução chegue perto de 1,8 mil km de linhas.

Fora da Malha Sul, o especialista cita também um trecho de 168 quilômetros, ligando Cataguases, na Zona da Mata, até Três Rios, no Rio de Janeiro, cuja concessão é da FCA. A operação turística dessa linha tem sido pleiteada pela ONG Amigos do Trem. Recentemente, a ANTT autorizou o início das obras de remodelação no primeiro trecho do percurso, de 37 km, entre Três Rios e Sapucaia (RJ). A VLI confirmou que está trocando as obras no trecho e os demais, que poderão compor o percurso turístico Rio-Minas, estão sob análise da ANTT dentro do processo de prorrogação da malha.

“Em nossos estudos, detalhamos também a questão do fomento que pode vir da própria concessionária, ao financiar a remodelação do trecho para outra alternativa de uso. E também colocamos em pauta as linhas de financiamento existentes e que quase ninguém utiliza ou conhece, a exemplo de opções disponibilizadas pelo Ministério do Turismo, por meio da Caixa Econômica Federal e do BNDES, para projetos de trens turísticos”, ressaltou Lima.

Fonte: Revista Ferroviária (Nova Edição).

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