Grupos nascidos da construção pesada iniciaram conversas com empresas especializadas em administração de ferrovias à procura de parceiros para as novas concessões do setor. Entretanto, apesar do interesse na formação de consórcios, a iniciativa privada tem dúvidas sobre o modelo do governo e vê riscos nos aportes bilionários exigidos pelo programa de concessões.
Para as empresas, a maior insegurança reside no fato de a estatal Valec ser a responsável por remunerar o investimento. Diferentemente dos contratos antigos, no novo desenho a concessionária não pode transportar cargas na própria ferrovia – para não causar dificuldades para concorrentes. A Valec comprará do concessionário, ano a ano, a capacidade total de movimentação na ferrovia. Por um lado, o modelo elimina o risco de demanda, já que a Vale garante a compra. Por outro, cria um risco governo.
O receio dos executivos é que, no futuro, um novo governo possa tomar medidas que modifiquem a remuneração da concessionária da ferrovia – por exemplo, interrompendo o desembolso feito pela Valec antes que os investimentos do concessionário sejam amortizados. Ciente da preocupação, o governo não abriu mão do modelo, mas sinalizou que pode publicar uma medida provisória para aumentar a segurança do investidor – colocando também a União como responsável pelos pagamentos.
Além de considerar o risco governo no pacote de ferrovias, os investidores ainda têm críticas sobre a rentabilidade dos empreendimentos. A taxa interna de retorno do projeto, desalavancada, é criticada pelas empresas desde a apresentação do pacote e não está sendo alterada. O governo está priorizando mudanças nas condições de financiamento, o que melhora somente a taxa alavancada. É pouco provável que haja apetite da iniciativa privada, resume um executivo.
Mudanças nos números do Planalto também têm causado desconforto. Nas apresentações feitas a potenciais investidores, Bernardo Figueiredo, presidente da Empresa de Planejamento e Logística (EPL), informou que a taxa interna de retorno alavancada para os projetos de ferrovia estava sendo estimada entre 13% e 16% ao ano. Esse foi o número usado nas palestras realizadas em São Paulo e Brasília. Mas nas apresentações no exterior, que já passaram por Nova York e Londres, a mesma taxa foi anunciada entre 9,26% e 12,5% ao ano. Houve uma dissonância e isso causa insegurança. O governo precisa afinar o discurso, afirma um executivo.
Apesar dos receios, a iniciativa privada demonstra interesse no negócio. O que mais agrada é o fato de o futuro concessionário não estar sujeito ao risco de demanda. Esse será um problema exclusivo do governo, responsável pelos pagamentos. Com isso, resta ter a garantia de que o concessionário será remunerado pelo governo durante os 35 anos de contrato.
Estão no aguardo das regras definitivas para avaliar a real participação no pacote as subsidiárias de grupos oriundos da construção, como CCR (controlada por Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Soares Penido), Odebrecht TransPort, Triunfo Participações e Investimentos (TPI) e Invepar (de Previ, Funcef, Petros e OAS). Também sinalizam interesse companhias ligadas ao setor de commodities, como a Cosan, e até a recém-criada Estação da Luz Participações (EDLP).
Paulo Godoy, presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), diz que tantos receios são decorrentes do fato de o modelo para ferrovias ser uma novidade no país. Tudo que é novo gera incerteza. As concessões de estradas, por exemplo, já estão consagradas. Qualquer empresa especializada já sabe tudo sobre as regras de rodovias, afirma.
Nos contatos atuais de concessão de ferrovia, firmados na década de 1990, as concessionárias eram responsáveis pelos investimentos na infraestrutura (trilhos e dormentes, por exemplo) e também podiam movimentar seus trens na malha. Atualmente, América Latina Logística (ALL), MRS Logística e Vale são as principais empresas que atuam em concessões de ferrovia no país. Mas, na visão do Planalto, os contratos causaram monopólio, dificuldades excessivas ao desenvolvimento da concorrência e subutilização de parte dos trechos. Por isso, no novo pacote cada empresa interessada deve escolher: ou investe na via como concessionário ou atua como transportador de cargas. Muitos interessados ainda não decidiram qual será a atuação.
Para Godoy, o governo já está tomando medidas para mitigar a percepção de risco da decorrente da novidade do negócio. Na semana passada, por exemplo, o Planalto anunciou que vai antecipar 15% da remuneração à concessionária antes mesmo de a obra ser terminada. Mesmo assim, o presidente da Abdib defende que o modelo precisa ter mecanismos que garantam segurança jurídica, estabilidade regulatória e rentabilidade adequada.
Outra dúvida que permanece entre os envolvidos no setor é o plano do governo para quatro trechos, incluído no pacote das novas concessões, que atualmente já estão sob administração da iniciativa privada. São ferrovias de América Latina Logística (ALL), MRS Logística, Transnordestina Logística e Ferrovia Centro Atlântica (FCA).
Para os trechos que estão concedidos, o governo irá celebrar acordos com as atuais concessionárias objetivando a devolução para que possam ser disponibilizados para novas concessões, diz posicionamento enviado pela Empresa de Planejamento e Logística (EPL), que coordena o assunto. Quase sete meses após o lançamento do pacote, no entanto, o governo ainda não concluiu a negociação e também não divulga detalhes sobre o plano.
Demanda de cargas pode demorar até uma década
O fato de a estatal Valec comprar do concessionário toda a capacidade de movimentação nas futuras ferrovias acende um alerta para os especialistas do setor, para quem governo vai assumir ônus demais. Em alguns casos, a demanda necessária para superar os custos nos trechos concedidos pode demorar até uma década após a sua construção.
Os trechos vistos com mais receio pelos especialistas são os paralelos e próximos à costa, onde o modal rodoviário é considerado mais rápido e barato. A ferrovia entre Recife (PE) e Salvador (BA) é considerado como um dos que menos atrairão interesse de possíveis transportadores. Outro visto como de fraca demanda é a linha entre São Paulo (SP) e Rio Grande (RS). Já o primeiro trecho a ser leiloado, entre Açailândia (MA) e Belém (PA), deve ter demanda forte. Assim como o Ferroanel, no Estado de São Paulo.
Paulo Fleury, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor do Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos, consultoria especializada no assunto), diz que a demora no surgimento de uma demanda robusta é considerada mesmo com programas de incentivo governamental à cadeia de clientes – por exemplo agricultores. O prazo de dez anos, diz, consta nos estudos do próprio governo.
Dentro desse tempo, a Valec continuará comprando toda a capacidade de movimentação da ferrovia mesmo que não haja transporte de cargas, utilizando recursos do Tesouro. Esse benefício de o concessionário não ter risco de volume é um erro fundamental, defende Fleury. Como, sem subsídio, as ferrovias provavelmente não sairiam do papel, Fleury defende um compartilhamento de riscos, para forçar a iniciativa privada – que visa lucros – a procurar mais clientes para a malha.
Conforme noticiou o Valor, o governo prevê a necessidade de entrar com um subsídio em torno de 40% de todo o investimento planejado. Tomando como base o investimento anunciado de R$ 91 bilhões, isso significa que cerca de R$ 36 bilhões sairão do Tesouro ao longo dos 35 anos de duração dos contratos.
Segundo Paulo Resende, professor da Fundação Dom Cabral, há ainda um desafio para a Valec incorporar um comportamento de mercado. Como, no fim das contas, vai ser responsável por pagar a infraestrutura da ferrovia, seria importante ela buscar mais clientes para estradas de ferro e potencializar receitas – algo visto como de difícil execução. Administrar a demanda é difícil até para a iniciativa privada. A Valec deveria passar por uma reestruturação e um aparelhamento técnico, defende.
Relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), adiantado pelo Valor em dezembro, sustenta a preocupação de Fleury e Resende. A análise conclui que a capacidade comprada pela Valec tende a ser bem maior que a demanda por trens, ao menos no período inicial de concessão. Isto pode levar a um desbalanceamento excessivo entre custo (fixo) e receita (incerta, apesar de crescente), diz o texto assinado por Fabiano Pompermayer, Carlos Campos Neto e Rodrigo Sousa.
Em maior ou menor tempo, a demanda deve ser liderada pelas commodities, acreditam as fontes ligadas ao setor, diz Luis Henrique Teixeira Baldez, presidente da Associação Nacional dos Usuários do Transporte de Carga (Anut, que representa empresas como CSN, Gerdau, Usiminas, Klabin e Bunge). Tenho conversado com muita gente e todos estão aguardando as regras, resume.
Rodrigo Vilaça, presidente da Associação Nacional de Transportadores Ferroviários (ANTF), acredita que haja pelo menos seis empresas potencialmente interessadas em comprar da Valec cotas de movimentação e transportar cargas – como JSL, Brado Logística, Rumo (da Cosan) e Estação da Luz Participações (EDLP).
Principal operadora de logística ferroviária, a América Latina Logística (ALL) cogita participar como transportadora de cargas, mas também não descarta ser concessionária de novos trechos segundo informação recente de um executivo da empresa. A MRS não demonstra forte interesse, mas ainda não descarta completamente a participação.
Grande interessada em transportar cargas nas novas ferrovias é a mineradora Vale, que está elaborando os estudos de demanda sobre os trechos. A empresa, no entanto, já descarta ser concessionária de novos trechos. A Rumo Logística, do grupo Cosan, é outra interessada.
Fonte: Valor Econômico, 04/03/2013