Fazer o percurso entre São Paulo e Rio de Janeiro por terra a uma velocidade de até 350 km/h é uma ideia que agrada a muitos brasileiros. Os trens de alta velocidade (TAV) são comuns na Europa, Estados Unidos e Ásia. Por aqui, o projeto que inicialmente deveria estar pronto para a Copa do Mundo só terá o edital lançado em setembro deste ano.
Nesta semana, mais um entrave para o para o primeiro trem bala brasileiro: o Ministério Público Federal entrou com duas ações na Justiça para rever o edital. Segundo o MP, as ações visam a “correção de irregularidades que podem gerar danos bilionários”.
Em entrevista a EXAME.com, o professor de engenharia de transportes da Coppe/UFRJ, Hostilio Ratton, defende que o trem-bala trará benefícios econômicos ao país, o que não significa que seja “viável financeiramente”, tornando a injeção de dinheiro público imprescindível para o projeto.
O engenheiro critica ainda a falta de detalhamento do projeto executivo do governo, além de sugerir que o modelo espanhol de TAV, que diversificou os fornecedores, seja copiado.
EXAME.com – O senhor vê vantagens em transferir a construção da infraestrutura do empreendimento para o poder público? Ou é melhor privatizar as obras inteiramente?
Hostilio Ratton – Costumo dizer que um empreendimento da envergadura de um sistema de trens de alta velocidade não tem como ser encarado como um projeto empresarial. A perspectiva empresarial se concentraria no negócio em si, no caso a prestação do transporte por trens rápidos, e como esse negócio permitiria aos investidores o retorno do capital aplicado. Conseguir essa viabilidade em tais projetos é muito difícil, porque o investimento inicial é muito grande e o retorno é crescente com o tempo, isto é, o número de pessoas que usará os trens e pagará as passagens cresce com o passar do tempo.
EXAME.com – E qual deve ser o raciocínio governamental?
Ratton – O poder público considera o retorno econômico. Na análise econômica, são considerados os benefícios (e problemas também) que ele traria para a sociedade como um todo. No caso dos TAVs, o resultado econômico é sempre positivo, mas o financeiro nunca é. Em nenhum outro lugar do mundo há trens de alta velocidade construídos apenas com recursos privados. O equívoco inicial com o nosso TAV foi a pretensão de que ele seria viável financeiramente. Como isso não acontece, ele tem que assumir seu caráter econômico e estratégico, comportando a entrada de recursos públicos e o seu retorno por conta dos benefícios advindos desse enfoque.
EXAME.com – Quais seriam suas principais críticas em relação aos estudos realizados e em relação ao projeto em si?
Ratton – No caso do TAV brasileiro, o nível dos estudos teve a finalidade de orientar o processo licitatório da concessão do serviço. Todos os estudos para detalhamento do projeto executivo ficarão por conta do vencedor desse processo, inclusive a opção tecnológica, se vai ser trem bala, se vai ser trem de levitação, isso está em aberto. Foi feito um estudo de viabilidade e um ensaio do traçado para servir de referência a esse processo, mas tudo pode ser completamente revisto em função da proposta vencedora. Se, por acaso, vencer uma proposta de trem magnético, toda estrutura viária terá que ser suspensa, em viadutos, e isso pode mudar tudo em relação ao que já se fez.
EXAME.com – E há algo a ser elogiado nele?
Ratton – O que se pode elogiar é a transparência do processo. Nunca um projeto foi tão debatido e durante tanto tempo. Essa história de trem de alta velocidade está volta e meia na mídia desde a década de 80 e os estudos especificamente para esse projeto datam do início da década de 2000.
EXAME.com – Quais atrasos o senhor acha que podemos esperar de uma obra desse porte? Quais dificuldades podem ser encontradas no caminho?
Ratton – Em princípio, o planejamento de obras do porte de uma ferrovia, ainda mais de alta velocidade, não comporta a expectativa de atrasos. Isso contribui negativamente para a oportunidade, que é a época mais adequada para sua implantação, e os resultados esperados, além de encarecê-la. Tempo é dinheiro e tempo perdido é dinheiro jogado fora. Mas, de fato, como nada é exato, existe sempre a possibilidade de que alguma coisa não aconteça exatamente como imaginada. Normalmente, uma programação bem feita considera tais possibilidades e indica três cenários para projetos dessa envergadura: o esperado, um menos otimista e um mais otimista, envolvendo variáveis como tempo, recursos a despender e os benefícios advindos da implantação.
EXAME.com – Funciona assim no Brasil?
Ratton – No Brasil, a experiência recente revelou que os projetos recorrentemente esbarram em situações problemáticas que escapam a qualquer previsão, porque não são aspectos técnicos que envolvem tais problemas. São aspectos jurídicos, como os processos de desapropriação, aspectos ambientais, neles incluídas questões de arqueologia, paleontologia, sociologia, além das tradicionalmente consideradas de poluição, ruídos etc. Há também aspectos relacionados à aplicação dos recursos financeiros, quando a obra for financiada por investimentos públicos, em relação a cuja aplicação pode haver desde atrasos na liberação até a sua suspensão por conta de intervenções dos órgãos de controle. Quanto a esses problemas, as medidas técnicas pouco podem fazer. O que se procura é estabelecer procedimentos normativos e regulamentares para prevenir tais situações, mas, às vezes pode acontecer de se descobrir um sítio histórico, arqueológico ou paleontológico somente no momento em que as máquinas já estiverem em campo, dificuldades com o tratamento de áreas ocupadas, decisões judiciais conflitantes com a jurisprudência, o que fatalmente levará a atrasos na implantação das obras.
EXAME.com – Há alguma proposta, tecnologia ou alternativa que possa ser considerada melhor do que a atual?
Ratton – Se a gente entender como “proposta” o modelo adotado para estabelecer o ordenamento institucional, jurídico e econômico para a implantação do projeto de trens de alta velocidade, que se inicia com a licitação do trecho Rio – São Paulo – Campinas, minha opinião é que os riscos são grandes, porque, a despeito da seriedade com que os estudos de viabilidade tenham sido feitos, trata-se de previsões para o futuro. E, em função disso, por serem previsões, se calçam em hipóteses para as quais nenhuma análise estatística comprova a sua validade com 100% de chance de acerto. Por conta disso, da margem de risco de que a sustentabilidade financeira não se concretize, e porque não existe nenhuma experiência similar, de conseguir financiar todo o empreendimento com o resultado de sua exploração comercial, minha opinião é de que não se deve descartar a possibilidade de que o setor público e o privado tenham que se associar no compartilhamento das responsabilidades, dos riscos e dos resultados positivos do empreendimento. Essa é a receita que deu certo onde há trens de alta velocidade.
EXAME.com – E no que se refere à tecnologia?
Ratton – Ela está em aberto no edital. Há três tipos de trens de alta velocidade: o trem de alta velocidade convencional, que é um trem com motores elétricos de grande potência, para atingir grandes velocidades, trafegando sobre uma via de características geométricas mantidas com altíssimo grau de precisão, com rampas muito pequenas, poucas curvas e as que existirem, de raio muito grande. Nesse tipo se encaixam os trens do Japão (Shinkansen), da França (TGV), da Espanha, da Coreia, popularmente conhecidos como trens-bala. Outro tipo, também com tecnologia de tração tradicional, mas que admite trafegar em trechos de curvas mais fechadas, por causa do sistema pendular de suspensão dos veículos, que se adapta a essas situações, é conhecido como Pendolino, mais difundido na Itália, na região dos Alpes. E o terceiro tipo é o trem-flecha, que se pretende implantar nos Estados Unidos e já opera entre Nova Iorque e Boston. Não é um trem que atinge as mesmas velocidades dos outros, que chegam a mais de 300 km/h, mas pode chegar a 280km/h. Ele tem um sistema de suspensão similar ao do Pendolino para poder trafegar nas vias onde normalmente passam os trens de carga, que, nos Estados Unidos, são muito pesados e trafegam com velocidades muito baixas, como os do Brasil. A tecnologia não tradicional é o trem de levitação magnética, que a rigor não é um trem, é um veículo que levita. É algo totalmente diferente do que se entende como trem e não há nenhum ainda em operação comercial.
EXAME.com – Qual é a melhor?
Ratton – Pessoalmente, escolheria o trem de alta velocidade tradicional e adotaria um modelo de implantação semelhante ao espanhol, que diversificou os fornecedores e agora desenvolve sua própria tecnologia. Por que da escolha? A experiência comprovada e a escala do negócio. Com uma tecnologia mais difundida, os preços de equipamentos, materiais e peças de reposição tendem a ser mais baratos, por causa da concorrência e pela escala das implantações já existentes. É mais ou menos o que aconteceu com a escolha entre os videocassetes Betamax e VHS. O VHS nem era o melhor, mas se difundiu mais e ganhou o mercado por conta da escala dessa difusão.
Fonte: Revista Exame, 03/03/2013