Uma nova “bomba tarifária” cresce silenciosamente após as manifestações populares de junho do ano passado. E não são só R$ 0,20: o congelamento das tarifas de transporte coletivo já representa uma fatura acima de R$ 1 bilhão para as operadoras de metrôs e trens urbanos nas principais capitais. À semelhança de outros preços administrados que também enfrentam defasagem, como a gasolina e a energia elétrica, essa conta aumenta a pressão sobre o orçamento público – forçado a tapar o “rombo” das empresas – e vai arrastando a necessidade de ajustes mais pesados a partir de 2015.
A defasagem acumulada desde os últimos reajustes gerou perdas de R$ 860 milhões até o fim de 2013, conforme levantamento inédito da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANP Trilhos), que reúne as operadoras metroferroviárias do país. O tamanho do rombo acumulado pode atingir R$ 1,5 bilhão neste ano, caso as tarifas permaneçam congeladas, segundo a entidade.
Às vésperas das eleições, quase ninguém acredita na disposição das autoridades em enfrentar o crescimento das distorções nos próximos meses. “Era um setor bem arrumado. Depois das manifestações do ano passado, ninguém sabe se, e quando, haverá reajustes”, diz, pedindo para não ser identificado, o presidente de uma empresa privada com investimentos em mobilidade urbana.
“Se vier um ou outro reajuste, neste ano, não será nada capaz de reverter a defasagem”, afirma a gerente-executiva da ANP Trilhos, Roberta Marchesi. Uma das principais preocupações da associação é com a dificuldade dos governos em manter aportes financeiros para equalizar esse déficit nas tarifas, com riscos à sustentabilidade das operações e à conservação dos trens. “Não vivemos ainda essa situação, mas é preciso acender a luz amarela. No limite, é o que ocorreu com a Argentina, onde houve sucateamento da frota e registros de acidentes. Está na hora de olhar seriamente para isso.”
Há defasagens de quase 90% nas tarifas praticadas, como é o caso dos trens urbanos de Natal, onde a estatal CBTU mantém o bilhete em R$ 0,50 desde dezembro de 2002. Se fosse atualizada pela inflação oficial do período, hoje a passagem valeria R$ 0,93.
Na semana passada, o governo estadual do Rio de Janeiro autorizou reajustes para os sistemas de metrô e de trens urbanos, que devem valer a partir de maio. Ambos são concedidos à iniciativa privada. Foi o único anúncio de aumento neste ano, em todo o país, mas envolve subsídios do governo e ainda não resolve inteiramente as pendências de 2013.
No metrô, que é operado por uma subsidiária da Invepar, o bilhete passará de R$ 3,20 para R$ 3,50. Esse valor já deveria ter entrado em vigência no primeiro semestre do ano passado, mas o reajuste foi suspenso após a onda de protestos populares. Usuários do sistema integrado de transporte – barcas, trens e metrô – continuarão pagando a tarifa anterior e um fundo social mantido pelo governo bancará essa diferença.
Com isso, o metrô atingirá novamente uma “tarifa de equilíbrio” a partir de maio, mas ainda não solucionou o déficit causado pelo congelamento das tarifas no ano passado. “Estamos avaliando, junto ao governo do Estado do Rio de Janeiro, o recebimento desse crédito”, afirma o presidente do Metrô Rio, Flávio Almada.
Sem entrar em números, o executivo diz que a empresa fez uma reprogramação financeira para “suavizar o desembolso de caixa no período 2013/2014”, deixando de investir em “melhorias”. Ele cita a revisão do layout das estações, reformas nos espaços para exploração comercial e projetos de inovação como aspectos prejudicados pelo congelamento de tarifas. Mas busca enfatizar que os investimentos em segurança dos sistemas foram preservados.
A Secretaria de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo, responsável pela administração do Metrô e da CPTM, não respondeu aos pedidos de entrevista. Suas operações respondem por mais de 80% dos passageiros de sistemas sobre trilhos no país.
A Trensurb, estatal federal que opera o sistema de trens da região metropolitana de Porto Alegre, não tem reajuste desde janeiro de 2008. O valor do bilhete está congelado em R$ 1,70 desde então. Se houvesse atualização pelo IPCA, segundo a ANP Trilhos, a tarifa subiria para R$ 2,35.
O presidente da Trensurb, Humberto Kasper, diz que hoje a tarifa cobre apenas 50% dos R$ 170 milhões por ano de custos operacionais da empresa. Segundo ele, mesmo sem reajuste, houve evolução no ano passado, pois a cobertura era de 43% das despesas em 2012. O rombo é tapado por recursos federais, que saem do Ministério das Cidades, pasta à qual a operadora gaúcha é vinculada.
A redução da defasagem tarifária foi possível, afirma Kasper, graças ao maior volume de passageiros e ao reforço na implantação da bilhetagem eletrônica. Também contou a entrada de R$ 4 milhões em receitas provenientes de publicidade e espaços comerciais.
Segundo o presidente da Trensurb, não há aumentos previstos para este ano e nenhuma discussão foi feita sobre a tarifa em 2015, mas registra sua posição: “O subsídio no transporte público é uma das formas mais seguras e equitativas de distribuição de renda no país”.
Efeito de medidas da União para reduzir custos do setor foi limitado, dizem empresas
As operadoras de metrôs e trens urbanos minimizam o impacto das medidas adotadas pela União para diminuir seus custos operacionais. Energia elétrica e mão de obra representam cerca de 40% das despesas. O pacote de redução das contas de luz, anunciado pela presidente Dilma Rousseff em setembro de 2012, deveria ter ajudado as empresas do setor. Mas quase todas atuam diretamente no mercado livre, onde os preços caíram menos.
Outro incentivo foi dado quando o governo federal incluiu as operadoras metroferroviárias entre os segmentos da economia com desoneração da folha de pagamento. No lugar de 20% da folha salarial, as empresas passaram a pagar 2% de sua receita bruta à Previdência Social. Essa mudança só começou a vigorar em janeiro e, mesmo assim, tem data de validade: termina no fim de 2014. Para empresas mais inchadas, o benefício é evidente, diz Roberta Marchesi, gerente-executiva da ANP Trilhos, associação que reúne as operadoras.
“Quem já tem uma estrutura enxuta tende a ganhar menos, ficar no zero a zero ou até não ter benefícios efetivos”, afirma Roberta. Esse é o caso, segundo ela, das operadoras privadas. São três atualmente no país: o Metrô Rio, controlado pela Invepar; a SuperVia, administradora da rede de trens urbanos do Rio de Janeiro, que pertence à Odebrecht TransPort; e a Via Quatro, empresa responsável pela operação da Linha 4-Amarela, no metrô paulista.
Também não prosperam projetos de lei que visavam desonerar PIS e Cofins dos transportes públicos. Essa proposta ganhou corpo durante as manifestações do ano passado, mas acabou não saindo do lugar. Mesmo se tivesse avançado, teria impacto para os usuários, mas não para as operadoras.
A redação dos textos em tramitação determinava que toda a receita dos tributos se refletisse nos preços. A ANP Trilhos tem uma ideia diferente: sugere que esses recursos sirvam para um fundo para investir em modernização dos trens usados nas operações. Boa parte da frota atual tem mais de 30 anos.
Fonte: Valor Econômico, 25/03/2014