Shinkansen

 

Dentro do trem, a velocidade não existe. Nem a paisagem na janela parece se atropelar

 

Reportagem de Márcio Gomes no “Jornal Nacional” me transporta de volta ao Japão. Lá, eles estão testando o protótipo de um novo modelo de shinkansen — nome local do trem-bala — que deverá entrar em operação em 2027. Trata-se de um comboio que levita por magnetismo e que, em testes, alcançou a velocidade de 581 km/h.

 

Cada parte do Japão fala pelo todo em termos de eficiência, civilidade e beleza. Não seria diferente com os icônicos trens-bala, que entraram em operação por ocasião das Olimpíadas de Tóquio, em 1964. Andei quatro vezes neles, em 2011 e 2012, indo e voltando da capital para Kyoto. Se pudesse, teria retornado ao Brasil num shinkansen.

 

O horário de partida dos trens desperta aquele misto de assombro e descrença que toma os brasileiros pela sua presunção de pontualidade: 9h01m, 9h07m, 9h09m… Como composições de linhas distintas usam as mesmas plataformas, é bom que o passageiro não seja — como eu sou — membro platinum dos Ansiosos Anônimos.

 

Se sua passagem for para o trem das 9h07m, e um deles parar na sua frente às 9h05m, não entre. Ainda não é o seu trem. Na dúvida, verifique o número do “voo” exibido nos painéis bilíngues na estação e na lateral do próprio veículo. Pode soar exótico para um brasileiro, mas no Japão as coisas são feitas para não saírem errado.

 

Quando der 9h07m, aí sim, o seu trem estará parado e já de portas abertas na plataforma onde ficará por um minuto, não mais, minuto no qual os passageiros subirão e descerão em ordem, em silêncio, sem afobação, seguindo os diagramas desenhados no chão, a indicar exatamente onde cada vagão estará e cada porta de cada vagão abrirá.

 

Sim, a primeira coisa a me assombrar num shinkansen não foi a velocidade, mas a capacidade de parar suavemente, bem no local pré-determinado. A correspondente do GLOBO em Tóquio, Claudia Sarmento, meio a sério, meio à brinca, diz que gostaria de fazer uma reportagem sobre os freios do trem-bala, eles sim o verdadeiro prodígio.

 

Dentro do vagão, o conforto é o da primeira classe das companhias aéreas. Quer dizer, imagino que seja, passei por algumas ao deixar o avião. O interior do shinkansen é espaçoso, limpo, claro. Não me parece haver a menor possibilidade de um passageiro esbarrar no braço do outro. Talvez, apenas, se um dos dois for lutador de sumô.

 

A chegada do fiscal de bilhetes a cada vagão é um espetáculo à parte. Ele faz a reverência japonesa aos passageiros na entrada e na saída, mesmo que nenhum dos salarymen engravatados esteja prestando a menor atenção. Entre uma porta e outra, ele também faz uma suave reverência a cada bilhete verificado. Pode soar exótico para um brasileiro, mas no Japão as pessoas que prestam serviços agradecem aos consumidores.

 

Caso não tenha sido possível fazer uma boquinha na estação antes da partida do trem, o que é difícil dada a oferta de comida no Japão, há um carrinho de refeições circulando ininterruptamente entre os vagões. Oferece todo tido de bebidas, sanduíches, biscoitos e pequenas refeições naquelas caixinhas de bentô, além de jornais e revistas.

 

A viagem em si é quase anticlimática. Dentro do trem, a velocidade não existe. Nem a paisagem na janela parece se atropelar. Plantações, cemitérios, fábricas, templos, prédios, estradas, com sorte o Monte Fuji. Tudo tem seu tempo. Nada trepida, nada faz barulho, ninguém berra. O silêncio é uma característica das sociedades mais avançadas, ele “fala” do respeito ao próximo. Pode soar exótico etc. etc.

 

Atualmente, o governo diz que o transporte de passageiros deve começar em junho de 2020. Daria para pegar a Copa do Catar, se não se soubesse que projetos dessa dimensão tomam ao menos cinco anos de trabalho duro. No Japão foi assim. No Japão. O consórcio entre o Estado brasileiro e as grandes empreiteiras para obrar burocracia, incompetência e corrupção não nos permite sonhar sequer com dez anos.

 

A bem da verdade, o país já estaria bem servido — para Copa, Olimpíadas e, sobretudo, dia a dia do cidadão — se contasse com uma malha ferroviária convencional em condições de uso. Esta opção, porém, foi descartada bem lá atrás, quando Juscelino Kubitschek ungiu a indústria automobilística como matriz do nosso desenvolvimento e, sem querer querendo, deu à sociedade brasileira uma feição egoísta, individualista.

 

Tornamo-nos, então, este povo abobalhado pelo carro particular, que privatiza a via pública, engarrafa, buzina, polui, gasta tempo e dinheiro, mata. E quando se pensa em transporte público, ora, bolas, se pensa em ônibus, sempre ônibus, sempre as empresas de ônibus… “Apaixonados por carros como todo brasileiro”, apregoa o slogan de uma rede de postos de gasolina. Definitivamente, eu sou meio japa.

 

Arthur Dapieve

 

Fonte: O Globo, 09/05/2014

 

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