Após o sucateamento quase completo da malha nacional e dos escassos investimentos em infraestrutura nas últimas décadas, a indústria ferroviária brasileira aposta nos trens regionais para impulsionar o desenvolvimento do setor de transportes sobre trilhos no País. Para Vicente Abate, presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer), com o adiamento do projeto do Trem de Alta Velocidade (TAV ou trem-bala) – que prevê ligar São Paulo ao Rio de Janeiro, passando por Campinas (SP) –, o desafio da integração nacional pelas ferrovias pode ser vencido de forma rápida e econômica com a implantação de linhas regionais, o que permitiria, ainda, aumentar a capacidade do transporte de carga. A expectativa da Abifer é de que o setor movimente anualmente cerca de R$ 70 bilhões entre os próximos cinco e dez anos.
Dois exemplos destes sistemas regionais são os projetos da Contrail, voltado ao setor de logística, e do Trem Intercidades, destinado ao transporte de passageiros – ambos previstos para entrar em operação nos próximos anos, em São Paulo, e financiados por meio de Parcerias Público-Privadas (PPPs).
Contrail: sinergia sobre trilhos e asfalto
A Operadora de Transporte Multimodal de Contêineres S.A., a Contrail, foi estabelecida em 2010, resultante da parceria entre a Estação da Luz Participações (EDLP) e a MRS Logística, com o objetivo de oferecer o conceito “porta a porto” em operações de transporte, por meio da combinação dos modais ferroviário e rodoviário, terminais estrategicamente localizados (CFCCs) e tecnologia da informação.
Juntas, a EDLP, que atua no segmento de assessoria logística e transporte no Brasil, e a MRS, uma das maiores operadoras ferroviárias do País, desenvolveram um modelo de negócio que transforma o transporte de contêineres que passam pelo Porto de Santos, transpondo de forma eficiente e sustentável a Serra do Mar, barreira natural com cerca de 800 m de altitude,localizada entre a Baixada Santista e o Planalto Paulista.
O conceito logístico da Contrail se baseia na utilização dos Centros Ferroviários de Consolidação de Carga (CFCCs), os quais permitem agrupar no mesmo trem contêineres de diversos tipos e tamanhos, para produtos e clientes distintos. Os CFCCs serão instalados em pontos estratégicos ao longo da linha férrea, formando uma extensa rede de captação e distribuição de produtos em São Paulo, o que, segundo a empresa, resulta em ganhos de escala e de capilaridade. A implementação completa da Contrail deve ser concluída no prazo de cinco anos, com um total de R$ 600 milhões em investimentos neste período.
A operação do sistema também prevê a construção do primeiro hub intermodal do Brasil, o Terminal Intermodal Porto de Santos (TIPS), localizado junto ao maior pátio ferroviário da Baixada Santista e próximo dos terminais marítimos das margens esquerda (Guarujá) e direita (Santos) do porto. Com 300 mil m² de área e capacidade para movimentar até 1,2 milhão de TEUs por ano, será o maior e o mais moderno terminal intermodal do Brasil, de acordo com a operadora.
A sigla TEU vem do inglês Twenty-foot Equivalent Unit, que em português significa Unidade Equivalente a Vinte Pés. O hub possibilitará o gerenciamento da movimentação de contêineres entre os CFCCs e os terminais marítimos. Em suas instalações, o TIPS será dividido em áreas para armazém geral, depot, e para as operações de estufagem, desova, cross docking, pré-stacking, transbordo e de transporte.
Associada à produtividade de movimentação gerada pelo TIPS, o modelo da Contrail introduz no Brasil o uso de vagões do tipo double stack, que permite o empilhamento de até dois contêineres de altura, possibilitando o carregamento de até quatro TEUs.
Para tanto, a AmstedMaxion, fabricante no segmento ferroviário instalada no interior paulista, está utilizando a tecnologia da americana Greenbrier no desenvolvimento do protótipo do vagão PentAMax, composto por cinco vagões double-stack articulados, desenhado para transportar contêineres empilhados no padrão ISO de 20 e 40 pés, com a bitola de 1,60 m. Carregados, os vagões terão a altura total de seis metros em relação ao nível dos trilhos. Por isso, contam com estrutura e componentes especiais para garantir sua estabilidade. O PentAMax dispõe de seis truques com suspensões especialmente desenvolvidas por meio de simulações computadorizadas dinâmicas e contínuas, além de elementos estabilizadores laterais de contato constante e rodeiros com adaptadores radiais. O sistema de choque e tração terá atuação diferenciada para vagão vazio e carregado e os freios serão montados diretamente nos truques, aumentando significativamente sua eficiência e segurança em serviço.
Conforme as previsões da operadora multimodal, com a utilização dos vagões com dupla capacidade, o “Trem Tipo” da MRS/Contrail, com 800 m de comprimento, terá um incremento de até 150% no volume transportado, podendo carregar até 200 TEUs. Além disso, segundo a Contrail, um estudo realizado nas principais ferrovias americanas constatou que o transporte de contêineres feito por vagão double stack emite 1/5 de carbono se comparado ao sistema rodoviário.
No ano passado, a MRS Logística comprou sete locomotivas da fabricante suíça Stadler para operar no trecho da Serra do Mar, por meio do sistema de cremalheira. Cada máquina tem cerca 18 m e o motor produzido pela Traktionssysteme Áustria gera a potência de 5.000 kW (6.800 cv) e força de tração de 700 kN (71.400 kgf). Conforme a MRS, as novas locomotivas são as mais potentes já construídas no mundo, sendo 50% mais eficientes do que as utilizadas anteriormente, fabricadas pela Hitachi na década de 1970. Com elas, a operadora pretende aumentar sua capacidade anual de 7 milhões de toneladas úteis para até 28 milhões de toneladas/ano, por sentido.
Trem Intercidades: a macrointegração
Também chamado de Trem Expresso Metropolitano (TEM) pelo governo de São Paulo, o projeto do Trem Intercidades (TIC) consiste de uma malha ferroviária de 431 km que ligará diversos municípios por meio de composições com velocidade média de 120 km/h, e que podem alcançar a máxima de 160 km/h. A proposta é conectar as quatro áreas metropolitanas do Estado incluídas na Macrometrópole Paulista, com as regiões de São Paulo, Campinas, Santos e Vale do Paraíba, na qual se localizam 153 cidades e uma concentração de 30 milhões de habitantes. Segundo os dados oficiais, essa macrometrópole gera 27% do Produto Interno Bruto (PIB) do País e reúne 72% da população e 80% de toda a riqueza gerada no Estado.
A ideia é utilizar as áreas de ferrovias já existentes no eixo norte-sul, interligando Americana até Santos, e no eixo leste-oeste, entre Sorocaba e Taubaté. As duas linhas se cruzam na cidade de São Paulo, onde o sistema também tem a previsão de se conectar à futura linha do TAV. De acordo com o secretário dos Transportes Metropolitanos, Jurandir Fernandes, o projeto funcional do primeiro trecho do Trem Intercidades está pronto e as obras devem começar até o final de 2014. Pelo cronograma do governo, o percurso inicial de 25,4 quilômetros, que vai interligar o ABC, deve entrar em operação em 2016. A extensão até Campinas, com 90 quilômetros, tem a construção programada para começar em 2015 e entrega em 2018. As outras linhas devem ser iniciadas em seguida, com prazo final de conclusão previsto para 2020.
O orçamento para interligar a Macrometrópole Paulista – o maior empreendimento privado em estudo no País – é estimado em R$ 20 bilhões, sendo que R$ 4 bilhões virão de recursos públicos. No final de 2012, o Conselho Gestor de PPPs do Estado de São Paulo aprovou a Manifestação de Interesse Privado (MIP) apresentada pelo consórcio BTG-Pactual/EDLP – que já são sócios na Contrail – para a realização do estudo de viabilidade do sistema de Trens Intercidades. Das 13 empresas autorizadas a fazerem os estudos, o consórcio foi o único a apresentá-los.
O projeto também atraiu o interesse das quatro fabricantes de composições já estabelecidas no País: Bombardier, CAF, Alstom e Siemens. Além delas, a alemã Vossloh e a Malásia Scomi Engineering, recém-instaladas em território nacional, também demonstraram intenções de participar do segmento de trens regionais.
Fonte: Revista Engenharia Automotiva e Aeroespecial (SAE), 28/07/2014
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