Sistema ferroviário brasileiro se consolida como boa opção de turismo

As marias-fumaças já não apitam tanto por aí, anunciando chegadas e partidas. Composições modernas e até mesmo silenciosas se espalharam por ferrovias mundo afora. Ainda assim o charme das viagens de trem continua nos trilhos. Seja nos serviços turísticos ou nos de passageiros, deslizar em uma estrada de ferro faz lembrar um tempo em que a viagem era tão importante quanto o destino.

O glamour do passado e as belas paisagens ajudam a manter o turismo ferroviário brasileiro. Os 31 trens turísticos do país devem atender três milhões de pessoas durante 2014, segundo a Associação Brasileira de Operadoras de Trens Turísticos (ABOTTC). Para aumentar em até 15% o movimento, a entidade lançou, em setembro, o projeto “Trem é turismo”, com o Sebrae. O momento é bom também para os trens de passageiros da Vale, que que renovou em agosto a composição da Estrada de Ferro Vitória a Minas e irá trocar, em 2015, as da Estrada de Ferro Carajás, que liga o Maranhão ao Pará.

Os 28 mil quilômetros de ferrovias brasileiras não chegam perto dos 250 mil da Europa, onde o trem é o meio de transporte mais pragmático, que conecta mais de 20 países. A rede tem espaço tanto para trens de passageiros que atingem mais de 300 km/h — como o TGV, que liga Paris a Barcelona — quanto para palácios sobre trilhos, caso do luxuoso Al Andalus, na Espanha. E, ainda que pareça um despropósito, é possível ir de trem de Lisboa a Moscou, e de lá embarcar na Transiberiana, a maior viagem de trem do mundo, com 14 dias de duração, até Pequim. Quem tem pressa que vá de avião.

 

NATUREZA E HISTÓRIA PASSAM PELAS JANELAS DOS TRENS

O movimento é intenso pouco antes das 7h de uma segunda-feira na estação Pedro Nolasco, em Cariacica, Grande Vitória. Passageiros de todos os tipos se enfileiram para embarcar no trem que irá passar as próximas 13 horas sobre os trilhos da Estrada de Ferro Vitória a Minas até chegar ao centro de Belo Horizonte. Operado pela Vale, é a maior linha de passageiros com saídas diárias do país, com 30 paradas ao longo de 664 quilômetros pelos estados do Espírito Santo e de Minas Gerais.

No último mês de agosto a frota foi totalmente renovada. Tudo foi trocado, dos vagões da classe executiva aos da econômica, passando pelo reservado aos portadores de necessidades especiais e os vagões restaurante e cantina, importados da Romênia.

Cada vagão executivo leva até 57 passageiros, em duas fileiras, uma com duas poltronas e outra com uma. Já um carro econômico tem espaço para 75 pessoas, em duas fileiras duplas de assentos mais simples e não reclináveis, porém confortáveis. Ambas as classes são climatizadas. Entre as duas, há o vagão-restaurante, com mesas para quatro pessoas, onde é servido almoço e jantar, e o vagão-lanchonete, onde também funciona a cozinha.

Comparado com o transporte rodoviário, a viagem é mais longa (13 horas contra 9h30m) e mais cara (R$ 91, na executiva, contra R$ 87,50 em ônibus convencional). Apesar de não reclinarem (o assento apenas desliza um pouco para a frente), as poltronas da classe executiva do trem são mais largas e confortáveis que a de um ônibus. E, em uma velocidade média de 60 km/h, a viagem de trem é mais suave que a do ônibus, por estradas nem sempre exemplo de conservação.

Não há sistema de entretenimento a bordo, mas isso não parece preocupar os passageiros. O ambiente encoraja a interação e é fácil puxar assunto com os vizinhos de vagão. Na classe executiva há tomadas para que celulares, tablets e laptops não se descarreguem ao longo do trajeto. Mas a melhor distração é mesmo observar a paisagem pelas janelas. Para isso, o vagão-restaurante, onde as janelas são mais amplas, é o melhor lugar.

Fora das regiões metropolitanas e das maiores cidades do trajeto, como Colatina, Governador Valadares e Ipatinga, a paisagem torna-se totalmente rural com o Rio Doce onipresente. Alguns pontos merecem destaque, como o Monte Lorena, perto de Aimorés, e as vistas do rio nas alturas de Barra do Cuité e Periquito.

O trem da Estrada de Ferro Vitória a Minas, que existe desde 1907, é um dos dois únicos serviços de passageiros de longa distância em funcionamento no Brasil. O outro é o trem da Estrada de Ferro Carajás, também operado pela Vale, que liga São Luís do Maranhão a Parauapebas, no Pará. Com 892 quilômetros em 16 horas de duração, é a viagem de trem mais demorada do país.

Trajetos bem mais curtos marcam os trens de lazer. Um dos mais conhecidos é o Trem da Serra do Mar, entre Curitiba e Morretes. A fama não é à toa. Boa parte dos 75 quilômetros do trajeto passa por dentro de uma área preservada de Mata Atlântica, com um visual que inclui muito verde, montanhas, rios, cachoeiras e o litoral paranaense, visto do alto. Ao longo do caminho, o trem passa por túneis, um punhado de pontes e alguns trechos rentes a precipícios. Muitas antigas estações e vilas usadas pelos operários que instalaram a ferrovia, em 1885, também estão pelo caminho.

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Dois tipos de trem fazem esse passeio. O mais popular tem quatro categorias diferentes e pode ter 21 vagões. Ele abriga até eventos temáticos, como o Beertrain, organizado pela cervejaria artesanal curitibana Bode Brown, com degustação de quatro tipos de cervejas.

Quem quiser uma experiência mais exclusiva pode embarcar na Litorina de Luxo, um trem de alta classe com dois vagões inspirados em trens de luxo italianos dos anos 1960, fabricados em Litória, daí o nome. Um deles tem o Rio de Janeiro como tema e o outro, Foz do Iguaçu. A disposição dos assentos como se fosse uma sala, e não exatamente um trem, deixa o ambiente mais aconchegante para quem viaja em casal ou com grupo de amigos ou familiares. O serviço de bordo inclui café da manhã e bebidas, como um espumante de boas-vindas. Apenas não exagere porque as curvas até Morretes não são brincadeira.

A responsável pela operação do Trem da Serra do Mar é a Serra Verde Express, que tem em seu catálogo mais dois importantes trajetos turísticos. Um deles é o Trem do Pantanal, que percorre 25 quilômetros entre Aquidauana e Miranda, no Mato Grosso do Sul. Ainda que tenha apenas o nome do mítico serviço de passageiros que ligou Bauru a Corumbá, na fronteira com a Bolívia, até o fim da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), em 1995, o trem turístico oferece um bom panorama do Pantanal. Das janelas é possível avistar áreas alagadas e animais.

O outro operado pela Serra Verde Express é o Trem das Montanhas Capixabas, que percorre parte de outra lendária ferrovia brasileira, a Leopoldina Highway, aberta em 1895. O passeio, que começa em Viana, na Grande Vitória, e vai até o povoado de Araguaia, cruza as charmosas Domingos Martins e Marechal Floriano, famosas por sua colonização de italianos e alemães.

A imigração europeia é valorizada também pelo Trem do Vinho, na Serra Gaúcha, puxado por uma locomotiva que parece ser movida a folclore. O trajeto entre Bento Gonçalves e Carlos Barbosa é pontuado por belas paisagens, degustações de vinhos da região e apresentações de dança e músicas típicas gaúchas e italianas.

AVENTURAS PARA LÁ DE TEERÃ

Um viajante interessado apenas em chegar a seu destino pode preferir um voo a uma viagem de trem de mais de sete horas. Mas há grandes travessias que são o destino em si, como a rota Budapeste-Teerã, inaugurada semana passada, de sete mil quilômetros.

O trem de luxo, chamado de Jewels of Persia pela Golden Eagle, empresa que opera o serviço, partiu no último dia 14 de Budapeste, na Hungria, para sua primeira viagem à capital do Irã. Serão duas semanas cruzando os Bálcãs, a Turquia e a antiga Pérsia a bordo de 13 vagões antigos reformados e decorados com requinte. Um deles serviu ao alto escalão do antigo Partido Comunista húngaro. Nem mesmo o momento conturbado no Oriente Médio assustou os 70 passageiros, que lotaram o trem e pagaram no mínimo 9 mil libras, ou R$ 35 mil, cada um. Para garantir a segurança, o exército iraniano se comprometeu a escoltar a composição.

Ao longo da viagem, os passageiros desembarcam e fazem tours por cidades como Brasov, na Romênia; Istambul, e Persépolis, no Irã. Se o cronograma estiver em ordem, o trem está hoje em seu décimo dia de viagem, o primeiro em território persa.

Duas semanas também leva a viagem de trem mais longa, e uma das mais famosas, do mundo. A Transiberiana liga Moscou a Pequim por mais de oito mil quilômetros de estrada de ferro, passando por três países e quatro fusos horários. O Grande Expresso Transiberiano cruza os Montes Urais, fronteiras entre Europa e Ásia, e chega até a fronteira da Mongólia com a China. Lá, a diferença de bitola entre as ferrovias obriga os passageiros a trocar de trem.

Outra viagem icônica percorre 1.244 quilômetros entre Puerto Quijaro, na fronteira da Bolívia com o Brasil, a Santa Cruz de La Sierra. Chamado de “Trem da Morte” graças às baixas causadas pela malária durante sua construção, o Expreso Oriental é um clássico entre os mochileiros na América do Sul. Nas 17 horas de viagem pelo Pantanal boliviano, passa por vilarejos pobres e cenários naturais indescritíveis. O que falta de conforto no trem, que não tem nem ar-condicionado, é compensado pelo número de histórias para contar.

SERVIÇO

Trens da Vale: A viagem entre Vitória e Belo Horizonte custa R$ 58 (econômica) e R$ 91 (executiva). Entre São Luís e Parauapebas, a passagem custa R$ 55 (econômica) e R$ 110 (executiva). vale.com

Serra Verde Express: O Trem da Serra do Mar sai aos sábados e domingos, e os bilhetes variam de R$ 72 (classe econômica) a R$ 290 (litorina de luxo). O bilhete do Trem do Pantanal custa R$ 90 por trecho. O passeio completo no Trem das Montanhas Capixabas sai a R$ 160. serraverdeexpress.com.br

Trem do Vinho: Entre novembro e janeiro, duas saídas diárias, a R$ 77. giordaniturismo.com.br

Fonte: O Globo, 23/10/2014

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