Apesar de suas dimensões territoriais, o Brasil precisa também pensar como um gigante e focar tanto na exportação de produtos com valor agregado além de commodities quanto em um impulso logístico que dê conta disso. Esse, ao contrário das condições que temos hoje, é encarnado na figura das ferrovias. Carente desse tipo de transporte, o País tem hoje cerca de 25 mil quilômetros de linhas férreas. Pouco para um país que almeja ser um ator global de peso no cenário econômico mundial. “Temos que ao menos multiplicar por cinco a nossa atual malha ferroviária. Somos um país continental que merece um destino diferente”, defende o engenheiro José Manoel Ferreira Gonçalves, presidente da ONG FerroFrente (Frente Nacional pela Volta das Ferrovias). “Hoje transportamos por trilhos apenas 50% da soja que exportamos pelo porto de Santos, que ainda é o maior do País”.
Entusiasta de um novo tipo de planejamento em termos logísticos e em transportes intermodais, Gonçalves critica o fato de historicamente o Brasil ter aceitado ser “quintal das nações que queriam exportar suas plantas fabris sucateadas de automóveis” e cedido à pressão de montadoras estrangeiras, “dos mesmos países que financiavam nosso desenvolvimento, nossa industrialização” no pós-Guerra. Em entrevista a CartaCapital, ele defende que o projeto para a ampliação da malha ferroviária no Brasil seja centralizado, em vez de distribuído entre os ministérios dos Transportes e das Cidades, como vem ocorrendo.
Confira os principais trechos da entrevista:
CartaCapital – O governo brasileiro pretende construir 11.000 quilômetros de ferrovias e outorgar maior acesso às linhas privadas existentes para reduzir os custos de transporte até 30%. As licitações da primeira de uma dúzia de ferrovias terá um custo de 96,1 bilhões de reais. Como o senhor avalia o projeto?
Jose Manoel Ferreira Gonçalves – Antes de tudo há de ser um projeto de Estado, ao contrário do que temos visto até aqui, projetos de governos, quando não apenas projetos partidários e até projetos políticos pessoais, o que é bem mais grave e não menos verdadeiro. E que seja minimamente centralizado, não distribuído entre Ministério dos Transportes, que nasceu com talento rodoviarista, Ministério das Cidades, VALEC Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. e mais quatro ou cinco instâncias que nunca se entendem. Há muito o setor ferroviário está abandonado. Não há projetos abrangentes. Quando os temos, os temos executado aos poucos e de forma desordenada, subdividindo a mesma ferrovia em diversos trechos, sob responsabilidade de empresas ou consórcios diferentes. Aí são inúmeros os problemas que têm aparecido, porque são inerentes à fragmentação. As competências construtivas e gerenciais são desiguais, os pagamentos atrasam, as obras param, o trecho concluído começa a ser sucateado e, ato contínuo, o caos passa a se instaurar.
CC – Por que temos uma “logística de ponta-cabeça”, com rodovias para viagens longas e ferrovias para as curtas, se investimos cerca de 12% do PIB em logística (quando países como os EUA investem 8%)?
JMFG – Porque numa urgência de modernização forçada (bonde já quase perdido numa interminável Velha República café-com-leite) aceitamos ser quintal das nações que, no pós-Segunda-Guerra, queriam exportar suas plantas fabris sucateadas de automóveis que renovavam lá. Além do mais, naquele momento abrir estradas era o que podíamos. Fazer tanto trilho não havia como. Fomos empurrados para o modelo rodoviarista por muitos motivos. Uma das razões internas era a nossa extensão continental, pairava uma ameaça fria de perdermos determinadas áreas se não as ocupássemos, se não abríssemos essas estradas. Os motivos externos são óbvios, as montadoras estrangeiras eram dos mesmos países que financiavam nosso desenvolvimento, nossa industrialização. Nossa condição de negociação estava limitadíssima. Investimos um percentual maior do PIB em logística, quando comparados aos americanos por vários motivos, mas principalmente porque eles já fizeram a lição de casa, a malha ferroviária deles já está pronta.
CC – Como começou a construção da malha ferroviária do Brasil? Ela era voltada para transporte de pessoas ou logística? Por que esse projeto parece ter sido abandonado?
JMFG – Começou há mais de 160 anos, com a ferrovia ligando a cidade do Rio a Petrópolis, porque a europeia família real sentia muito calor na eterna cidade maravilhosa e desejava o frescor da serra. Fez-se então 14,5 km de trilhos no Brasil. Depois disso, há 120 anos, com o apoio dos ingleses e financiado pelo café, São Paulo fez muita ferrovia. Não por obra do governo, mas do capital privado e do conhecimento alheio, construímos ferrovias de ponta, com a melhor tecnologia existente naquela época, vencendo desafios importantes e imponentes, como a Serra do Mar. Infelizmente, isso tudo foi abandonado. Não apenas abandonado, foi colocado de lado e, aos poucos sucateado, de forma irresponsável e delituosa até. A ferrovia não era modernizada e começava a perder espaço para o caminhão, que transportava mais rápido e garantia a entrega no tempo certo, ao contrário das ultrapassadas ferrovias, que não recebiam investimentos sequer em equipamentos, quanto menos na melhoria de seus traçados. Depois disso, em 1998, a Fepasa (Ferrovia Paulista S.A.), que vinha dando prejuízo, resultante da baixa capacidade competitiva, foi incorporada à Rede Ferroviária Federal, que acabou extinta. Em seguida foram feitas as concessões atuais, mas de forma pouco eficiente, pelo menos em termos de transporte, sem a contrapartida de investimentos. Os concessionários lucraram, mas não investiram. O resultado: nem dos dormentes algumas das concessionárias fizeram as necessárias trocas, e os acidentes, inclusive com mortes, foram sendo lamentavelmente registrados em diversos trechos.
CC – Na sua opinião, por que o Brasil se tornou tão dependente do transporte rodoviário?
JMFG – Houve e há muito incentivo para as montadoras. No governo Juscelino Kubitschek o bacana era abrir estradas. Moderno era o carrão, copiado dos americanos, claro. Até antes disso, no governo Getúlio Vargas, quando implantamos a Fábrica Nacional de Motores, inicialmente para fazer motor de aviões e depois fabricar caminhões. Aí fizemos concessões rodoviárias e pedagiamos quase tudo, pelo menos no estado de São Paulo. Enquanto isso a indústria automobilística, muito bem organizada, influenciou governos sucessivos, até mesmo de forma pouco republicana.
CC – É verdade que nos anos 90 o modelo de concessão ferroviária do governo FHC permitiu aumentar a produtividade e a superconcentração do tráfego em minério e grãos, mas baixou o grau de intermodalidade?
JMFG – Muitas vezes, sim. As concessões feitas para o transporte de minério de ferro foram muito bem aproveitadas, porque sua logística é mais simples. Afinal, basicamente, o minério sai da mina direto para as siderúrgicas. Isso é muito diferente nos outros ciclos produtivos, são outras as logísticas. Para essas importa que exijamos contrapartidas dos vencedores das concessões para que investimentos sejam feitos ao longo do tempo, e para que haja o favorecimento da intermodalidade.
CC – Os governos que o sucederam conseguiram reverter esse quadro? O que é preciso ser feito para ter as ferrovias como um meio de transporte e logística importante?
JMFG – Os sucessivos governos não conseguiram reverter esse quadro, antes pioraram o estado das coisas. Hoje nem ferrovia pronta, acabada e entregue funciona! Para mudar isso precisamos mudar a cultura rodoviarista, investir em ensino superior e técnico para melhorar a qualidade de nosso bem maior, que é o ser humano. O maior problema da ferrovia está na falta de informação. Se as pessoas tomarem consciência sobre quantas pessoas morrem nas rodovias por causa de caminhões que não eram para estar lá, quantas pessoas morrem por doenças respiratórias nas cidades por causa da fumaça do ônibus que era para ser trem, talvez só isso já fosse o bastante para reverter muito.
CC – Como o Brasil pode aumentar a capacidade de transporte por ferrovias e diminuir gargalos logísticos? É preciso ampliar a malha já existente? Quanto?
JMFG – Temos que ao menos multiplicar por cinco a nossa atual malha ferroviária, que hoje chega apenas a vergonhosos 25 mil quilômetros. Somos um país continental que merece um destino diferente. Hoje transportamos por trilhos apenas 50% da soja que exportamos pelo porto de Santos, que ainda é o maior do país. Temos que dar um basta ao absurdo de constatarmos que fica mais barato levar do porto de Santos para a China, do que de Mato Grosso ao porto de Santos. Mas fazer isso elaborando projetos, capacitando gente e empresas, atraindo capitais que venham investir e não apenas especular. É fundamental fazermos a curva, passarmos a exportar mais produtos com valor agregado que commodities. Assim talvez possamos talvez realmente sentirmos o que seja, afinal, o tal século 21.
Fonte: Carta Capital, 17/11/2015
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