Criadas no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, entre dezembro de 1996 e setembro de 2001, para garantir a estabilidade regulatória dos serviços públicos concedidos pelo governo federal à iniciativa privada, as agências reguladoras ainda enfrentam muitos entraves para exercer esse papel, como ficou demonstrado durante o Simpósio de Infraestrutura: Perspectivas Globais, Concorrência e Regulação, promovido nos dias 5 e 6 de maio, em Brasília, pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib).
Em relatório divulgado no ano passado, o Tribunal de Contas da União (TCU) já apontava que há demora pelo Poder Executivo na substituição de diretores e faltam transparência e regras claras na atuação das agências, o que leva à judicialização de questões técnicas e diminui fortemente a autonomia decisória. Para o ministro Bruno Dantas, do TCU, ao deixar de indicar os quadros das agências, o Executivo usurpa a competência do Senado, o responsável constitucionalmente pela sabatina dos diretores dessas entidades. Dantas lembra que, se as agências fossem mais bem estruturadas, não precisariam aguardar um parecer do tribunal. “O papel do TCU não é fazer modelagem de mercado, e sim fiscalizar se os atos das agências estão amparados na lei”, explicou o ministro.
Segundo Dantas, o saldo da atuação do TCU é muito mais positivo do que negativo. Se o Brasil até agora teve algumas rodadas bem-sucedidas de concessões, diz o ministro, a participação do TCU foi crucial. “Esse quadro que identificamos hoje, de um certo temor reverencial que as agências e o poder concedente, que são os ministérios, têm em relação ao TCU tem raízes mais fundas”, afirma o ministro. “Não é porque o TCU é o bicho-papão e que está lá para condenar todo mundo. É claro que o TCU é firme e rigoroso, mas está habilitado para fazer o que faz e, às vezes, as agências e os ministérios não estão. ”
Segundo o engenheiro Edvaldo Santana, que foi diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) durante oito anos, as agências perderam o protagonismo e hoje ocupam papéis secundários na concessão e fiscalização da infraestrutura no País. Em seu entendimento, isso se deve ao crescimento do intervencionismo estatal: “O Estado interventor cria regras novas que vão modificando a economia, promovendo desonerações tributárias e incentivos a setores escolhidos”. Santana cita ainda a falta de autonomia financeira e de independência política como principais entraves ao bom funcionamento das agências.
Para muitos especialistas que acompanham a área, há a sensação de que as agências reguladoras não têm cumprido o que deveria ser seu verdadeiro papel. Há excessiva interferência ministerial e politização em seus quadros e pouca percepção de como os contratos de concessão são afetados por políticas públicas e pelo andamento geral da economia. “As agências reguladoras precisam melhorar seus padrões de governança”, diz José Berenguer, presidente do banco JP Morgan no Brasil. “É de se exigir algo mais do que gerir e fiscalizar com uma visão excessivamente estreita os contratos de concessão”, reforça o consultor econômico Raul Velloso.
Na época em que foram criadas, após a instituição em 1990 do Plano Nacional de Desestatização, ficou estabelecido que vários setores estratégicos da economia seriam privatizados, gerando a necessidade da criação de órgãos de regulação e fiscalização que mediassem os interesses das empresas prestadoras de serviços delegados pelo Estado e dos usuários. “Havia um discurso, mais do que uma convicção geral, de que o Brasil deveria despolitizar a burocracia de governo e oferecer mais profissionalismo na administração”, afirma o advogado Carlos Ari Sundfeld, especialista em direito público e professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP).
Para garantir essa estrutura, ficou estabelecido que as agências seriam autarquias de regime especial, integradas à administração pública, formadas por pessoas de grande especialização técnica, que deveriam atuar com a maior independência possível em relação ao Poder Executivo e com imparcialidade em relação às partes interessadas.
As primeiras a serem criadas foram a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a de Telecomunicações (Anatel) e a do Petróleo (ANP). Atualmente, são dez agências reguladoras federais e inúmeras outras estaduais e municipais, cada uma estruturada de acordo com um setor. Entre as federais, a última foi criada no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2005: a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).
Não há um marco legal aplicável a todas as agências, embora existam vários projetos de lei com esse objetivo em tramitação no Congresso. Em comum, todas possuem uma diretoria colegiada, ouvidoria, procuradoria, recursos humanos, áreas especializadas em regulação, fiscalização e administrativas. Os diretores, aos quais cabem as decisões em última instância, possuem mandatos fixos para se proteger de pressões políticas e não podem ser demitidos por critérios arbitrários. São indicados pela Presidência da República, com aprovação do Senado, após sabatina para verificação de sua competência.
“Na prática, as agências acabaram tendo o modelo desvirtuado”, constata Sérgio Guerra, professor de direito administrativo da FGV-Direito Rio. “Hoje, temos órgãos com uma boa base técnica, prejudicada pela interferência casuística dos políticos. ” O exemplo mais contundente dessa interferência, segundo os especialistas, foi o problema vivido por usinas e distribuidoras de energia desde 2012, quando o governo federal decidiu forçar uma queda no preço da luz para famílias e empresas. A medida resultou em desequilíbrio do setor elétrico e desrespeito a contratos, iniciando um processo de desajuste no setor que ainda não terminou.
“A longo prazo, como no caso de concessões a empresas de energia elétrica, contratos que se acredita terem substância jurídica não são obedecidos rigorosamente por interferência política”, afirma Carlos Ari Sundfeld. “Essa insegurança tira a confiança das empresas para participar de concessões na área de infraestrutura. Por isso, a independência das agências é essencial, do ponto de vista técnico e também político. ”
Para o advogado Nelson Eizirik, especializado em direito societário, quando as decisões das agências são mais técnicas, reduz-se o número de litígios judiciais. É o que ocorre, por exemplo, com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O órgão costuma embasar suas decisões em pareceres estritamente técnicos e, além disso, conta com o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, que tem uma composição mista, com metade dos julgadores representantes da sociedade e a outra metade, do governo.
“O chamado Conselhinho é um órgão de recursos que avalia as decisões da CVM e do Banco Central e cujas decisões são normalmente acatadas pelas partes. Em poucos casos se recorre à Justiça, apesar de existir também essa possibilidade”, explica Eizirik, para quem a autonomia da CVM deveria servir de espelho às agências reguladoras.
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/05/2016
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