Da janela do prédio onde funciona a Editora Globo, no centro do Rio, acompanho há quase dois anos as obras de instalação do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), um bondinho mais moderno que seus pares que circulam em Santa Teresa e semelhante aos de capitais europeias como Londres e Amsterdam. Ao longo desse tempo, já me irritei com a confusão das obras, com a dificuldade de andar por calçadas destruídas e com a loucura em que se transformou o trânsito. Mas de alguns meses para cá a irritação deu sinais de arrefecer. Começou quando a Prefeitura do Rio colocou um vagão na Cinelândia, para que nós, moradores e visitantes da cidade, pudéssemos conhecer o tal VLT, um dos legados que os Jogos Olímpicos vão deixar para a cidade. Bonitinho, pensei, mas será que vale a pena tanto transtorno? Em novembro, soube que composições circulavam pela madrugada, em fase de testes. Fiquei curiosa.
Em fevereiro, começaram os testes diurnos. A irritação derreteu mais um pouco quando eu o vi passando, tocando um sino nos cruzamentos – não há um “sino” de fato, é uma gravação digital, mas é muito mais charmoso pensar que, nos cruzamentos, o condutor puxa uma cordinha para tocar o badalo. A irritação foi definitivamente substituída pela vontade de dar uma voltinha e testar o funcionamento. Fiz o teste na quinta-feira (19), acompanhando uma equipe de técnicos e de condutores em treinamento. O trajeto foi quase completo. A primeira linha, prevista para entrar em circulação em 5 de junho, liga o Aeroporto Santos Dumont, no centro, à rodoviária, na zona portuária. O que eu constatei:
1) O sino digital não é suficiente para avisar as pessoas de que o bonde está passando. O VLT tem uma buzina potente, como aquelas de caminhão. No trajeto entre a Cinelândia e a zona portuária ela foi acionada algumas vezes. Serve para alertar pedestres que atravessam os trilhos sem esperar o sinal fechar ou que estão entretidos passando mensagens em seus telefones, e para carros que fecham os cruzamentos. É grande a quantidade de pessoas que atravessam a rua despreocupadamente, achando que é obrigação do condutor parar o VLT para lhes dar passagem. Uma delas, irritada por ter levado uma buzinada, fez um gesto obsceno em resposta. Em um cruzamento, dois carros que possivelmente aceleraram para ultrapassar um sinal amarelo, ficaram com as rodas traseiras sobre os trilhos – mais buzinadas. Mas inacreditável mesmo foi o entregador de mercadorias que achou que a pista do bonde era uma ciclovia livre e desimpedida, uma obra pensada para que ele pudesse entregar suas mercadorias com mais rapidez. Buzinadas, buzinadas. A prefeitura aumentou o número de agentes de trânsito nos cruzamentos, para evitar acidentes. Nas áreas de maior movimento de pedestres, os bondes passam em baixa velocidade, 20km/h – o máximo a que chegam, em trechos mais livres, é 50km/h. Mas pela despreocupação de pedestres e motoristas, alguns acidentes parecem inevitáveis, ao menos até que a população se acostume com a novidade.
2) Quando o VLT estiver funcionando de fato – na primeira fase, a partir de 5 de junho, circulará apenas entre 12h e 15h – vai ser irresistível aproveitar o horário de almoço para dar uma voltinha na nova Praça Mauá ou no bulevar construído na avenida Rodrigues Alves, antes uma área inóspita coberta pelo viaduto da Perimetral. O lugar lembra o Highline, o parque nova-iorquino construído sobre viadutos abandonados da rede ferroviária. No Rio, o boulevard não é elevado, mas a visão de galpões antigos e dos armazéns da região portuária lembra o que foi feito em Nova York.
3) Como a Perimetral enfeiava a cidade! Eu, reconheço, estava entre os milhares de cariocas que achavam que seria impossível viver nessa cidade sem aquele emaranhado de pistas ligando o centro do Rio aos acessos à zona norte e à Niterói. O trânsito continua ruim e tremo cada vez que preciso ir a algum lugar onde, antes, ia pela Perimetral. Mas tudo ficou tão mais bonito… Até mesmo o horrendo prédio da Polícia Federal, uma daquelas construções austeras inauguradas por Getúlio Vargas nos anos 1940.
4) Separando os trilhos do VLT das pistas de carros e do grande calçadão para pedestres foram instaladas muretas feitas com placas de vidro. Novinhas e limpinhas, ficaram lindas. Mas não sei quanto tempo sobreviverão a acidentes e atos de vandalismo.
5) O olhar dos motoristas presos em seus carros, engarrafados na pista ao lado enquanto se atravessa a avenida Rio Branco no VLT traz à mente o refrão do hit de Valeska Popozuda: “beijinho no ombro pro recalque passar longe/beijinho no ombro só pros invejosos de plantão”.
Fonte: Época, 20/05/2016