O sonho de integração entre os países latinos é tão ou mais antigo quanto a luta pela independência de cada nação. Esse processo passa necessariamente pelos transportes, em especial por via terrestre, mas deve ser planejado cuidadosamente para não causar danos às comunidades locais e ao meio ambiente.
Atualmente o principal projeto de integração sendo discutido na região é conhecido como Ferrovia Bioceânica, que fará a ligação entre o Atlântico e o Pacífico. O estudo mais avançado para implementar esta obra já está em análise pelo governo brasileiro e tem apoio da China.
Percorrendo Brasil e Peru, este projeto deve ter 6.000 quilômetros e favorecer as exportações sul-americanas, além de criar uma alternativa terrestre de baixo custo ao canal do Panamá na rota entre Ásia e Europa.
Contudo, há outras propostas que parecem ter sido esquecidas pelo governo brasileiro. A principal delas incluiria a Bolívia no trajeto e teria apoio financeiro da Alemanha.
Em junho de 2015 houve uma reunião do Subgrupo de Trabalho para o Corredor Bioceânico Central, quando a delegação boliviana apresentou ao Brasil e ao Peru um estudo de viabilidade comercial, impacto ambiental e possíveis traçados para a ferrovia.
De acordo com a ata do encontro, a delegação brasileira “indicou que o projeto ferroviário proposto por Bolívia atende a dois pilares da política de transporte do Brasil”. Além disso, o projeto foi tido como “bem-vindo”.
No dia 20 de agosto de 2015, o Ministro Federal de Transportes e Infraestrutura Digital da Alemanha, Alexandre Dobrindt, esteve em reunião com o então Ministro dos transportes do Brasil, Antonio Carlos Rodrigues.
Na ocasião, Dobrindt demonstrou grande interesse de seu país em participar do novo ciclo de concessões de rodovias e ferrovias, com investimentos projetados de R$ 152,5 milhões.
Segundo o site do Ministério dos Transportes do Brasil, o trecho brasileiro da ferrovia receberia investimento de R$ 40 bilhões. A proposta em análise foi solicitada pela Calle2 via lei de acesso à informação, mas a solicitação foi negada pois se trataria de “documento preparatório para ato decisório” e só poderia ser divulgado após tomada de decisão do governo. Ainda na resposta, o ministério diz que “o atual estágio dos estudos da Ferrovia Bioceânica encontra-se em processo de ajustes pelos signatários e discussões com órgãos externos”.
Em entrevista à Calle2, o Oficial de Assuntos Econômicos, Divisão de Recursos Naturais e Infraestrutura da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), Gabriel Pérez-Salas, avaliou quais os interesses em jogo na elaboração do projeto ferroviário bioceânico.
“A região possui uma carteira importante de projetos de integração, muitos dos quais levam anos sendo analisados nas instâncias que a própria região criou para isso. Dado que as infraestruturas condicionam profundamente os padrões de consumo de seus usuários, a seleção do tipo de infraestrutura e a forma em que estas se desenhem, operem ou regulem, condicionarão significativamente a qualidade dos serviços prestados, assim como suas implicações em termos de consumo de energia, emissão de carbono e externalidades negativas para a população, durante toda a vida útil da infraestrutura”, avalia Pérez-Sala.
Segundo o oficial, “por isso é essencial que o desenho destas obras considerem todas as variáveis em jogo. Se as decisões forem incorretas no início, as externalidades negativas sobre a população e o meio ambiente se incrementam e o grau de esforço e o custo requerido para conseguir reduções no futuro será muito maior”, acrescenta.
A interconexão de infraestruturas representa uma enorme oportunidade para melhorar a logística e a mobilidade de cada país participante em termos de eficiência e conectividade a um custo menor do que significaria fazê-lo individualmente. Para conseguir uma integração regional plena, é requisito básico criar as confianças necessárias, tanto políticas quanto institucionais, que assegurem a cada um dos governos e seus cidadãos, que o processo de integração gerará benefícios na qualidade de vida e no desenvolvimento de cada nação, superiores aos que seriam alcançados individualmente.
“Também é crucial que cada país assegure um compromisso integracionista que transcenda no tempo e uma institucionalidade que favoreça o diálogo e a participação público-privada em todos os níveis”, afirma Pérez-Sala.
Questionado sobre os possíveis danos e benefícios de um projeto ferroviário internacional na América Latina, o oficial da Cepal afirmou que “sem dúvida a integração física e por certo a terrestre favorecerá o desenvolvimento da região na medida que os projetos estejam bem estruturados, os fluxos sejam realistas e as obras considerem a mitigação eventual que podem causar sobre o meio ambiente e as regiões povoadas adjacentes. A chave para isso é uma política adequada de logística, que favoreça uma visão integrada sobre as obras”, afirma.
Na visão do oficial, a Cepal identifica uma série de pré-requisitos conceituais para o desenho e implementação de políticas públicas, que devem ser compartilhados por todos os atores, independentemente de serem púbicos ou privados, de modo a garantir a qualidade e sustentabilidade da política. Assim, uma política de logística deve abordar com uma visão integral todos os aspectos vinculados à circulação de mercadorias e pessoas, a prestação e regulamentação dos serviços de uso público e privado, a facilitação comercial e de transporte, as normativas técnicas e econômicas que regulam ou influenciam o setor logístico e de mobilidade, entre outros múltiplos aspectos.
Com relação ao papel do Estado e dos atores privados, Pérez-Salas diz que “a ação e intervenção pública no setor de logística é imprescindível”. O Estado tem um papel insubstituível no desenho e implementação de políticas públicas, onde alcançar uma visão de longo prazo, com planos de desenvolvimento integrados e um financiamento adequado, independentemente dos vaivéns políticos e dos ciclos econômicos.
Ele afirma ainda que a participação do setor privado pode ser muito importante, com aporte de capital, inovação e serviços de valor agregado, mas para isso “deve existir um planejamento e execução coordenada de ações entre o setor público e privado. Por isso, o diálogo público-privado é essencial para a boa governabilidade logística, que deve ser vista como um processo de melhoria contínua, em que se move progressivamente através do consenso e integração de novos desafios e preocupações que afetam a própria estratégia de desenvolvimento e integração regional”, finaliza Pérez-Salas.
Fonte: Calle 2, 11/04/2017