BRASÍLIA – As principais empreiteiras investigadas na Lava-Jato resistem em admitir um superfaturamento estimado em R$ 3 bilhões pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e, caso não avance um canal de colaboração aberto em sete processos no tribunal, as empresas poderão ser declaradas inidôneas e sofrer sanções como pagamento do dano acrescido de multa de 100% do valor. O superfaturamento de R$ 3 bilhões calculado pelo TCU se refere a contratos para obras da usina nuclear Angra 3, Ferrovia Norte-Sul, Complexo Petroquímico do Rio (Comperj) e Refinaria Presidente Getúlio Vargas (Repar). Até agora, nenhum documento com intenção de colaboração e de reconhecimento de sobrepreço nos contratos foi protocolado pelas empreiteiras nos processos, segundo fontes da área técnica do tribunal ouvidas pelo GLOBO.
O canal de negociação foi aberto em sete processos levados à votação em plenário neste ano. Em alguns deles, os ministros decidiram suspender punições a empresas ou dar melhores condições em bloqueios de bens, à espera de colaboração nas investigações sobre os danos causados. É o que vem sendo chamado de “sanção premial”, uma forma de conceder benefícios às empreiteiras em troca do reconhecimento de que houve superfaturamento em contratos. O tribunal espera pelo menos uma abertura de dados ou uma auditoria externa que permita um cálculo próprio do sobrepreço pela empresa, para que as duas partes cheguem a um acordo.
Os processos envolvem empreiteiras que já assinaram acordos de leniência com o Ministério Público Federal (MPF) ou com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Essas negociações não envolveram outros órgãos, como o TCU, que tem atribuição para, por exemplo, declarar a inidoneidade de um empreendimento, o que o impediria de assinar novos contratos com o poder público. Nos acordos de leniência, as empreiteiras admitem práticas como pagamento de propina a funcionários de empresas públicas, fraudes em licitações e formação de cartel. Elas não reconhecem, no entanto, o sobrepreço de contratos como fonte do suborno pago.
Se as negociações naufragarem, as empresas podem ser punidas de três formas. A declaração de inidoneidade tem prazo máximo de cinco anos, contados a partir do fim do julgamento de todos os recursos. O ressarcimento do dano deve ser acrescido de uma multa de até 100%. E há ainda o pagamento de juros de mora, que equivalem aos rendimentos que a administração pública deixou de obter em razão dos desvios por parte das empresas. Uma eventual colaboração poderia resultar em continuidade da idoneidade, abatimento da multa e perdão dos juros de mora, além de parcelamento do dano, com base na capacidade de pagamento da empresa.
A resistência das empreiteiras tem uma razão econômica: os valores acertados nos acordos de leniência não contemplaram danos como superfaturamento, que, em alguns casos, se aproximam do ressarcimento acertado na leniência. Um exemplo: o acordo entre Camargo Corrêa e MPF no Paraná previu R$ 700 milhões em ressarcimento. A empresa está citada em dois processos no TCU que estabeleceram um canal de negociação. Em um, sobre Angra 3, o superfaturamento está estimado em R$ 1,2 bilhão – Odebrecht e Andrade Gutierrez também são responsáveis pelo dano, segundo o TCU. Em outro, a respeito da Ferrovia Norte-Sul, o superfaturamento calculado pelo tribunal é de R$ 136,4 milhões.
O processo de Angra 3, votado em março deste ano, inaugurou a possibilidade de “sanção premial” no TCU. Por fraude em licitações, o tribunal declarou a inidoneidade de Queiroz Galvão, Empresa Brasileira de Engenharia, Techint e UTC. Ao mesmo tempo, “sobrestou” a punição a Camargo Corrêa, Odebrecht e Andrade Gutierrez, em razão da leniência assinada com o MPF e da expectativa de colaboração com o tribunal. Os prazos dados já foram renovados e, até agora, não houve a apresentação formal de propostas de colaboração, segundo fontes do TCU.
Depois desse caso, outros seis abriram a possibilidade de colaboração em troca de punições mais brandas. Um deles envolve outro contrato para Angra 3, a cargo da Engevix, com superfaturamento estimado pelo TCU em R$ 2,1 milhões. A Engevix chegou a entrar com um recurso contra a deliberação do TCU, um indicativo concreto de que não há intenção e reconhecer a prática de superfaturar contratos, segundo técnicos do tribunal.
Já o sobrepreço em contratos da Norte-Sul foi estimado em R$ 206,8 milhões, sendo a maior parte dele atribuído à Camargo Corrêa. No Comperj, o superfaturamento colocado para negociação é de quase R$ 1,2 bilhão. Entre as empreiteiras apontadas estão Odebrecht, Andrade Gutierrez e UTC. Na Repar, o valor calculado foi R$ 428 milhões, com apontamento de responsabilidade a Odebrecht, OAS e UTC.
TRATAMENTO DIFERENCIADO
Relator dos processos relacionados à Ferrovia Norte-Sul, o ministro Benjamin Zymler afirma que o “tratamento diferenciado” a essas empresas se justifica em razão da importância dos acordos de leniência e de delação premiada assinados pelos empreendimentos e por seus executivos.
– O TCU propôs que o MPF buscasse o “recall” dos acordos de leniência já firmados de forma que essas empresas se comprometessem a colaborar com os processos perante esta Corte de Contas, em especial trazendo elementos que permitissem apurar o cálculo dos sobrepreços embutidos nos contratos. Em troca dessas colaborações, poderiam ocorrer a mitigação ou isenção das sanções aplicáveis e a amenização da forma de se indenizar os cofres públicos – disse Zymler ao GLOBO, por e-mail.
O ministro cita que a falta de uma legislação específica gera incerteza jurídica para as empresas. Para Zymler, “é compreensível que as empresas estejam temerosas em adotar formas participativas de colaboração”. O ministro Bruno Dantas, relator dos casos de Angra 3, diz que a lógica das empresas “sempre foi a do lucro”:
– Não posso permitir que quem desviou dos cofres públicos dezenas de bilhões de reais à vista pretenda pagar parceladamente, ao longo de 30 anos, uma pequena fração do total desviado. A sociedade brasileira não aceita isso, e acho improvável que o TCU venha a aceitar – diz Dantas.
O advogado da Andrade Gutierrez e da UTC, Sebastião Tojal, disse ao GLOBO que as empresas não reconhecem a prática de superfaturamento dos contratos, muito menos o cálculo feito pelo TCU. Isso não significa que não exista colaboração com os órgãos de controle, segundo o advogado.
– Uma coisa é colaborar. Outra coisa é admitir responsabilidade por coisas que não são reais. As empresas não admitem a acusação de sobrepreço, mas não se negam a ver o conjunto de fatos apurados. O que não se pode aceitar é que um ato de constrangimento prevaleça. Esse percentual apurado pelo TCU a partir de estudo econométrico é de duvidosa aplicação – afirmou Tojal.
O advogado disse que a Andrade Gutierrez apresentou há uma semana ao Ministério Público Federal (MPF) em Curitiba uma minuta de aditamento ao acordo de leniência assinado. Pela minuta, a empresa se compromete a complementar a colaboração, de forma a acrescentar dados úteis ao TCU. A UTC, por sua vez, vem fornecendo subsídios ao Ministério da Transparência , com quem assinou leniência, também com vista a colaborar com o TCU.
– As empresas não aceitam o cálculo do superfaturamento e não podem ser compelidas a reconhecer fatos que não são verdadeiros – afirmou.
A Odebrecht, por meio da assessoria de imprensa, disse que colabora com as investigações “de forma definitiva”. “A qualidade e a eficácia da colaboração da Odebrecht vêm sendo confirmadas dia a dia e têm sido instrumento valioso para a ação da Justiça. A empresa segue em tratativas com os órgãos de controle da União visando estabelecer premissas e critérios para cálculo dos danos ao erário, e já registrou perante o MPF disposição de colaborar plenamente com o TCU”, afirmou.
Fontes do setor dizem que a empreiteira não reconhecerá ter cobrado por serviços não feitos. O que ela poderá admitir é que, se tivesse havido competição na disputa por contratos, o lucro da empreiteira teria sido menor. A Odebrecht também não reconhece o cálculo de superfaturamento feito pelo TCU.
A Camargo Corrêa, por sua vez, afirmou ter sido a “primeira grande empresa do setor a firmar acordo de leniência e segue em contínua e permanente colaboração com as autoridades competentes”. A Engevix disse que “não reconhece qualquer superfaturamento”. “O valor apontado, que desconhecemos formalmente, mostra ser uma parcela ínfima de cerca de 1,5% do total de contratos que a empresa ganhou em processos absolutamente limpos e bastante competitivos. Não temos o que admitir de malfeito no âmbito da Eletronuclear (responsável por Angra 3). A empresa está se defendendo, mostrando que ganhou os contratos de maneira limpa“, afirmou a assessoria da empresa.
A OAS disse que não vai se manifestar. A reportagem não localizou os contatos das assessorias das empresas Toyo e Constran, citadas nos processos do TCU.
Fonte: O Globo, 22/11/2017
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