Ele olhou para as nossas passagens, conferindo mentalmente minha mulher e eu antes de fazer uma pausa e nos lançar um olhar amistoso, mas perplexo. “Rufus e Hamilton”, leu na impressão. “Vocês estão em quatro?”.
A nossos pés estavam nossos dois pugs pretos, aninhados em suas bolsas de viagem forradas, tranquilamente embalados pelo ritmo do trem, enquanto seguíamos de Nova York para Washington.
Sempre que possível, quando viajamos levamos os cães conosco porque, para nós, eles são parte da família. Descobrimos há tempos que passear com os bichos deixa as aventuras sempre mais divertidas, ainda que um pouco mais complicadas. E o fato é que não somos os únicos: tem muita gente por aí que adora sair de férias com os pets.
O que significa que cachorros, gatos e outras espécies estão frequentando, com uma frequência cada vez maior, os lugares de onde já foram banidos; hotéis, restaurantes e até aeroportos estão se tornando mais acolhedores. Nem todo mundo ama nossos bichinhos, mas pelo menos o mundo parece estar nos oferecendo mais opções – ou, pelo menos, nos tolerando mais – e facilitando a nossa vida quando saímos com nossos pugs.
Por isso, ficamos intrigados quando, uns dois anos atrás, a Amtrak começou a permitir a presença de cães de pequeno porte em algumas rotas, mediante uma taxa extra. A iniciativa abriu uma nova opção para nossos pequenos aventureiros explorarem o país.
Ansiosos para conferir o mais novo meio de transporte canino, compramos passagens ida e volta para Washington para onde íamos para participar de… bom, um encontro de pugs. E reservamos lugares aos nossos pés para Hamilton, dez anos, de queixo cinza e cara de modelo, e seu irmão de olhão arregalado, o curioso Rufus, de quatro anos e uma única pata branca, simpaticíssimo.
A Amtrak permite que animais de até nove quilos sejam transportados em caixas/sacolas pequenas nas viagens de até sete horas de duração, ou seja, com oito quilos cada um, os nossos pugs não teriam problema nenhum na jornada de 3,5 horas até Washington. A taxa de US$25/animal, para cada trecho do percurso, também tinha ares de verdadeira pechincha, já que as companhias aéreas cobram, no mínimo, US$100 cada perna para os cãezinhos que voam na cabine.
É claro que a viagem de trem não é perfeita e a Amtrak, muito menos. Pode haver atrasos inexplicáveis, cancelamentos e descarrilamentos assustadores. Da mesma forma que acontece com outros meios de transporte de um animal, continua valendo a ansiedade em relação a cheiros indesejados, o pet que fica nervoso ou um passageiro mal-humorado. E a área de espera da Penn Station não é exatamente uma praia majestosa.
Desde que a Amtrak começou a permitir cães, nossos pugs já nos acompanharam três vezes, duas para Washington e uma para Boston, e em todas descobrimos um elemento de simplicidade que faz com que tenha se tornado nosso meio de transporte preferido e que vale a pena explorar.
Da mesma forma que as passagens normais, as dos animais também podem ser reservadas on-line. Uma das poucas exigências é o preenchimento de um documento no qual eu tenho que assumir a responsabilidade por qualquer problema que os pugs por ventura venham a causar enquanto em trânsito. (Nunca causaram.)
Em todas as viagens, pegamos o metrô para a Penn Station mais cedo, tendo tempo para matar no lounge da companhia. A sala de esperar é meio abafada nos dias mais quentes de verão – e está a anos-luz do deque de cobertura do Aeroporto Internacional JFK que Rufus teve a oportunidade de explorar antes de embarcar para a Califórnia, no ano passado –, mas pelo menos oferece um local apartado da multidão.
Viajar com um cão não implica em ter acesso ao seu assento antes dos outros passageiros nem garante sua poltrona preferida, mas, ainda assim, o embarque é bem mais fácil que o do avião, pois não é preciso ter que segurar, ao mesmo tempo, o cãozinho ansioso, a mala e o sapato. Antes do embarque, ninguém ali vai pedir que você o coloque na esteira do raio-X.
Já a bordo, os pugs dormiram nas cestinhas aos nossos pés, praticamente invisíveis à maioria dos passageiros, só percebidos por um gemido ou latido ocasionais. Na visita recente a Boston, experimentamos deixá-los um tempo no colo – o que é contra as regras –, mas nem o condutor, nem quem estava à nossa volta pareceram se importar. E a dupla conseguiu aproveitar um pouco da paisagem enquanto passamos pelas cidadezinhas charmosas da Nova Inglaterra.
Nossos pets são particularmente adaptáveis não só ao trem, mas a qualquer meio de transporte: além de tranquilos e sociáveis, parecem não se importar de ter que ficar horas na sacola de viagem, contanto que recebam petiscos de vez em quando.
A verdade é que bem antes de adotarmos a opção férrea, os dois já eram viajantes experimentados.
Adotado quando ainda era bem novinho, em Ohio, Hamilton logo se adaptou à vida urbana de Nova York, tendo voltado várias vezes, de automóvel e avião, ao Meio Oeste. Antes de uma viagem de carro para o Dia de Ação de Graças, anos atrás, o pequeno foi ficando cada vez mais nervoso ao me ver colocar no porta-malas as coisinhas dele, sem saber aonde eu estava indo, desesperado, querendo ir junto.
É claro que ele ia comigo.
“Hamilton, relaxa, rapaz”, tentei lhe dizer, mas ele só acreditou quando pegamos a estrada – e depois de conseguir desarranjar o estômago. (Fizemos várias paradas ao longo do caminho.)
Com o tempo, sua confiança foi crescendo. Durante o atraso de um voo em Cleveland, ele foi a salvação dos passageiros tensos, distribuindo high-fives e pedindo petiscos. Uma vez se sentou, quietinho, em sua sacola sob o meu assento, absorvendo a injustiça de eu ter que pagar sua passagem enquanto o bebê se esgoelando ali ao lado voou de graça. Em outra ocasião, uma mulher o notou e assumiu imediatamente que eu era de confiança, inclusive me pedindo que olhasse as malas dela enquanto dava uma saidinha (eu recusei).
Rufus já conhecia a vida na estrada antes mesmo de nos conhecer, pois fez a viagem, de caminhonete, de um abrigo no Texas para Nova Jersey, onde o adotamos em uma organização de resgate. Alugamos um carro da Zipcar para o curto percurso rumo à sua nova casa, em Nova York, e ele insistiu em dividir o colo da minha mulher com Hamilton. Desde então, Rufus anda conosco para todo lado. Cumprimenta as pessoas com seus olhos enormes, curiosos e, simpático, deixa qualquer viajante nervoso à vontade.
Um de seus passatempos favoritos, aliás, é latir para os aviões no céu – o que não deixa de ser divertido pensar que, sem saber, ele pegou exatamente esse mesmo voo para a Califórnia no ano passado, acomodando-se quietinho sob o assento durante mais de seis horas, inclusive durante uma leve turbulência.
Mas nem sempre é assim tão tranquilo.
Durante uma viagem de carro a Boston com Hamilton, Rufus e um pug amigo deles, Finn, tivemos que parar para tentar achar a origem de um cheiro misterioso, mas nunca chegamos a descobrir o que era. Depois de irmos para Chicago com o mesmo trio, o carro alugado ficou coberto de pelos, e tivemos que limpar os assentos antes de devolvê-lo para evitar pagar multa. As viagens na Long Island Rail Road durante a temporada de verão podem ser caóticas na companhia de um cachorro, principalmente porque há menos lugares do que passageiros. De ônibus na Hampton Jitney, a coisa foi mais complicada e apertada, com o cachorro na mão.
Mesmo na última viagem a Boston, nosso trem estava quase uma hora e meia atrasado, fato que só foi anunciado quando estávamos quase chegando à Penn Station. Para complicar, estava um dia mais quente que o normal para o início de maio, o que transformou a área de espera em uma caverna aquecida – mas deixamos os pugs fora das sacolas para esticar as pernas enquanto aguardávamos a chegada do trem.
Se a demora incomodou Hamilton e Rufus, eles não demonstraram, e pareciam mais que dispostos quando chegamos a Back Bay Station, nosso destino final.
Fonte: O Globo, 04/07/2018