A concessão da RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.) na década de 1990 foi, claramente, um caso de sucesso. O tráfego ferroviário, medido em toneladas-km, quase triplicou de 1998 a 2018. O resultado foi um salto de produtividade no transporte ferroviário. Ao mesmo tempo, a taxa de acidentes despencou de 70 para 17 acidentes por milhão de quilômetros de trens rodados entre 1998 e 2018. As concessionárias investiram R$ 40 bilhões entre 2006 a 2015. E, talvez ainda mais importante considerando-se os objetivos da reforma dos anos 90, foram cortados dos orçamentos federais os subsídios anuais de R$ 300 milhões para financiar o déficit operacional da RFFSA.
O PANORAMA, NO ENTANTO, TEM QUE SER CONTEXTUALIZADO
Vejamos mais de perto. Entre 2006 e 2018, a mineração foi responsável por quase 90% do aumento do tráfego; isso é bom para as exportações de produtos de mineração, mas o quadro geral do crescimento do tráfego ferroviário tem as suas nuances. Dados da ANTT mostram que a velocidade comercial média das concessionárias ferroviárias no Brasil é de cerca de 17 km/h -bem abaixo da média de 33 km/h das ferrovias de Classe I nos Estados Unidos.
Além disso, o sistema de monopólios regionais das treze concessões prejudica o tráfego de longa distância e a eficiência logística. Em 2018, a ANTT calculou que apenas 10% da carga ferroviária transitava por mais de uma concessão. Segundo estimativas da CNI, 30% dos 29.075 km de ferrovias concessionadas encontram-se inoperantes ou simplesmente abandonados.
MAS EXISTEM OPORTUNIDADES
Sem dúvida, a melhor opção seria esperar o fim das concessões atuais e implementar um modelo de livre acesso, separando a gestão da infraestrutura das operações ferroviárias, visando maximizar a competitividade e a eficiência logística. Ainda que esta opção tenha o custo de atrasar investimentos, troncos principais da infraestrutura ferroviária -como a Ferrovia Norte-Sul (FNS) e o Ferroanel- deveriam ser administrados sob acordos de livre acesso.
No próximo leilão da FNS, será que a concessionária vencedora estaria disposta a correr o risco, durante os 30 anos de vigência da concessão, de depender de concorrentes para a entrada e saída de trens em sua área de concessão -seja para Itaqui ou para Santos?
O novo Governo Federal decidiu retomar o processo de renegociação. Agora, no entanto, o governo tem uma grande vantagem, que deve ser aproveitada ao máximo: tem o tempo a seu favor. As concessões não devem ser renegociadas a qualquer preço e visando ganhos de curto prazo.
Três elementos devem ser levados em conta com atenção. Primeiro, os direitos de passagem. Os novos contratos de concessão devem incluir a obrigação clara de prover acesso justo a terceiros operadores. Por acesso justo, me refiro à tarifas e à qualidade dos horários (slots) disponibilizados. Os atuais Contratos Operacionais Específicos, com base em acordos mútuos, não são suficientes. Segundo, obrigações claras e executáveis de investimentos em infraestrutura, devidamente orçados e programados. Pela assimetria de informação, isso é mais fácil na teoria do que na prática, como se vê no histórico das concessões rodoviárias. Terceiro, considerar a transferência de trechos específicos, de maior interesse regional do que nacional. É o que ocorre, por exemplo, no trecho Jundiaí – Campinas – Americana, em São Paulo, que deverá ser compartilhado com o Trem Inter-Cidades, atualmente em fase de planejamento.
Da mesma forma, também em São Paulo, as linhas férreas que não são operadas pela concessionária atual deveriam ser retiradas da concessão e operadas sob acordos mais flexíveis e menos regulados, em modelo semelhante às “linhas curtas” (short lines) dos EUA. O PLS 257/2018 traz um primeiro esboço dessa ideia, embora o conceito de “autorregulação” incluído no PLS precise ser melhor esclarecido.
E O TRANSPORTE FERROVIÁRIO DE PASSAGEIROS?
O último trem de passageiros São Paulo-Rio de Janeiro partiu da Barra Funda para a estação de Barão de Mauá há mais de vinte anos (1998). Hoje, à exceção de alguns poucos trens turísticos espalhados pelo Brasil, os dois únicos serviços regulares de transporte inter-regional de passageiros ainda em operação no país (Vitória-Minas e Carajás) transportam apenas um milhão de passageiros por ano. Tomando novamente os Estados Unidos como exemplo, o sistema ferroviário Amtrak transportou cerca de 32 milhões de pessoas em 2017.Embora represente apenas uma pequena parcela de todas as viagens inter-regionais nos Estados Unidos, o exemplo mostra que há espaço para linhas inter-regionais, mesmo em um país como os EUA.
No Brasil, contratos de concessão ferroviária novos ou renegociados devem deixar espaço para serviços regulares de transporte ferroviário de passageiros -em todos os locais onde esse meio de transporte faça sentido economicamente. Em um país com 75% da população localizada a 250 km do litoral, os serviços ferroviários podem competir de forma eficiente com o transporte aéreo ou ônibus inter-regionais. Essas possibilidades devem ser exploradas sistematicamente em projetos ferroviários ainda não lançados.
Talvez seja tarde demais para o leilão da Ferrovia Norte-Sul. O custo de oportunidade de postergar esse projeto novamente é, sem dúvida, enorme.
A reforma ferroviária dos anos 90 foi um sucesso, mas esse modelo agora está chegando ao limite. O futuro ferroviário no Brasil -assim como os trens- precisa chegar na hora certa.