Reflexões acerca do setor ferroviário e o ‘novo normal’

A pandemia da COVID19 e os severos impactos à saúde pública, provocados sobretudo pela dolorosa e imensurável dor pela perda de vidas, levam o setor metroferroviário à reflexão, análise e busca de novos parâmetros ao recém-criado jargão do “novo normal”. Se olharmos por uma perspectiva histórica, as crises costumam oferecer oportunidades e soluções para diversas questões devido à efervescência de debates, discussões e ideias, turbilhão de pensamentos e alimentadores de inovações.

Neste contexto, e reconhecendo o momento de repensar e promovermos a reengenharia dos pequenos detalhes ao todo, precisamos colocar no papel um Plano Brasil, com visão de Estado, de longo prazo, econômica e socialmente justo e sustentável. O setor metroferroviário carece deste planejamento e este Editorial pretende lançar alguns pensamentos e reflexões para o bom debate.

A ausência deste planejamento de mobilidade urbana e interurbana criou desequilíbrios de propósitos, dando-se maior prioridade ao transporte individual em detrimento do transporte público, coletivo, estruturante, da integração de modais, do abandono e quase aniquilação dos trens de passageiros regionais. Essa métrica deve ser revista e servir de norte ao estabelecimento da melhor política pública de transportes.

Os impactos da pandemia sobre o setor dos transportes públicos em geral são superlativos e precisamos pensar fora da caixa para buscarmos alternativas. Com queda inicial de demanda de passageiros na casa dos 80%, e oferta de trens acima de 70%, a conta não fecha. Mesmo neste início de flexibilização do isolamento social, a queda remanesce superior aos 50% e a oferta mantém-se acima de 80%, com algumas linhas alcançando os 100%. A retomada virá, certamente, pois nossas metrópoles dependem deste transporte de massa. As questões que ficam são como e quando isso acontecerá?

Para pensar em uma retomada dessa demanda, precisaremos criar um programa de incentivo ao uso dos transportes públicos, com todos os ajustes sanitários e de segurança necessários. Muito se falou dos planos municipais de mobilidade urbana, mas poucos são os municípios que conseguiram levá-los adiante. Essas iniciativas necessitam ser efetivadas e estarem em aderência ao planejamento macro, federal. Papel de extrema relevância neste processo seria a implantação de Autoridades Metropolitanas de Transportes, entidades de Estado, que tratariam do planejamento plurianual, priorização de projetos, financiabilidade, integração dos modais e equilíbrio tarifário, entre outros. Em nível federal, poder-se-ia pensar na criação de uma Agência Nacional de Investimentos, órgão de Estado que encamparia as mesmas atribuições quando das relações subnacionais, podendo, inclusive, tornar-se a grande Agência Nacional onde poderiam ser discutidos, projetados, priorizados e promovidos os planejamentos de todo o cabedal de infraestruturas do país. Isso garantiria a realização, a longo prazo, dos projetos de infraestruturas, dando, inclusive, a necessária prioridade para atender melhor ao interesse público.

No campo econômico, além de incentivar e facilitar uma maior participação privada nestes investimentos, através de marcos regulatórios, segurança jurídica, econômica, garantias, aportando previsibilidade e estabilidade ao setor, uma proposta seria repensar as bases de sustentação econômica dos projetos de mobilidade.

No Brasil o transporte público se apoia, geral e majoritariamente, sobre o modelo tarifário, resultando em uma injustiça social, visto que as camadas menos favorecidas, maior massa de usuários, são as que dão sua frágil sustentação, afinal, são elas que “pagam a conta e carregam o sistema nas costas”.

O risco de demanda, um dos cinco riscos não gerenciáveis do sistema, também precisa ser repensado. O modelo adotado no setor elétrico de transmissão no final da década de 90 poderia ser adaptado: o da disponibilidade. Os investidores se responsabilizariam por manter a disponibilidade dos trens em operação, transportando regularmente seus passageiros, mediante o cumprimento de índices de performance, e com o recebimento de uma tarifa pré-fixada que seria, por sua vez, suportada em parte pelo modelo tarifário, em parte pelas externalidades e em parte pelos subsídios. Tudo isso seria reunido em um Fundo Garantidor de Transportes, que daria o respaldo e segurança necessários às operações. Externalidades dos projetos são os ganhos econômicos indiretos ao negócio em si, como, por exemplo, aqueles oriundos da exploração imobiliária, direitos de imagem, direitos de passagem sobre a via ou de comunicação ou de energia, entre outros.

Os subsídios existem em grande parte dos transportes públicos mundo afora. Ajustando à realidade limitada de nosso equilíbrio fiscal, não se trataria de criar novo tributo senão resgatar parcela de impostos, taxas, tarifas e contribuições que outrora foram criadas para também darem sustentação ao transporte público, como por exemplo o IPVA ou a CIDE que incidem sobre os veículos, ou mesmo parcela do IPTU, que mantém o sistema viário apto ao uso, ou parte das receitas com os estacionamentos de veículos, multas, entre outras. O produto desta parcela da arrecadação seria também aportada ao Fundo Garantidor de Transportes.

Usemos a máxima que nos ensinou esta pandemia, de que não serão os mais fortes os que sobreviverão a longo prazo, mas aqueles com maior capacidade de se reinventar, com disciplina.

Está na hora de agregar à matriz de cálculo dos projetos uma Taxa de Retorno Social dos empreendimentos, garantindo os ganhos econômicos e sociais à coletividade como alavancador de parte importante do funding de novos negócios. Uma nova linha metroferroviária elétrica, por exemplo, retira o transporte individual das ruas e estradas, representa ganhos na saúde pública, menor número de acidentes, menor trânsito e, portanto, maior produtividade ou uso ao lazer, além de menor exalação de gases de efeito estufa, entre tantos outros. Este cálculo é empregado amplamente pelos especialistas econômicos e o que se propõe aqui é também utilizá-lo como alavancador e viabilizador de projetos. Esse modelo pode, inclusive, ser capitalizado e ainda aportar recursos aos investimentos no Capex destes projetos, através de debêntures de infraestruturas que pudessem ser comercializadas nas bolsas de valores.

Uma saída robusta à crise econômica está no investimento em infraestruturas, recuperando nosso profundo déficit neste segmento e aportando maior competitividade ao país, com barateamento dos bens e serviços e melhor qualidade de vida aos brasileiros. Em meio ao reflexo da pandemia, poderia atuar como maior propulsor da retomada econômica, fomentando a geração de emprego e renda. Neste contexto, é importante refletir sobre o fato de que cada país procurará privilegiar o seu produto em detrimento do importado. Nesse caso, precisamos investir mais no “made in Brasil” como critério básico, promovendo, entre outros, a defesa incansável da isonomia nas concorrências internacionais. Fechando o ciclo econômico e aportando outro cenário de financiabilidade dos projetos, também seria importante o uso dos títulos verdes (green bonds), dada sua evidente melhor sustentabilidade e ganhos econômicos-sociais-e-ambientais que os modais individuais ou aqueles coletivos a motor de combustão. E também abre espaço para o incentivo à conversão das frotas de transporte público aos modelos elétricos, híbridos, a gás ou a hidrogênio.

No campo técnico, podemos refletir também no estabelecimento de padrões das infraestruturas, sistemas e material rodante, permitindo o estado da arte tecnológico, qualidade, segurança e sustentabilidade a longo prazo. Outra medida importante, nesse momento, seria estabelecer uma idade limite dos equipamentos e materiais rodantes para avaliar reformas ou aquisição de novas composições, incentivando as áreas de serviços e indústria locais.

É na adversidade que aguçamos nossos instintos de sobrevivência e suscitamos nossa imaginação na busca de soluções efetivas e perenes. Vislumbramos, como legados desta pandemia, que haja uma evolução comportamental dos indivíduos e de cada um de nós na sociedade; união dos indivíduos e maior solidariedade; mudanças de mentalidade, de hábitos e de costumes com prioridade à qualidade de vida; novo estágio da digitalização global; campo fértil à inovação, quebra de paradigmas. Neste estágio da pandemia e nos que seguirão, precisaremos estar prontos para fazer a mesma coisa, mas de forma diferente, e melhor. Assim, como sociedade, vamos evoluir, criar, inovar ao ainda desconhecido.

A confiança e credibilidade precisam ser resgatadas e emergiremos maiores, em um mundo mais virtual, tendo a saúde como drive de maior relevância. Não sucumbamos ao medo ou às incertezas e sim empreguemo-los como motivadores e impulsionadores que nos forcem a buscar alternativas e soluções. Essa deve ser a razão de nossa esperança e fé, que jamais devemos perder!

*Abifer (Associação Brasileira da Indústria Ferroviária) e Simefre (Sindicato Interestadual da Indústria de Materiais e Equipamentos Ferroviários e Rodoviários)

Fonte: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/ref…

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