As polêmicas sobre os impactos ambientais e a viabilidade financeira que, vira e mexe, são alardeadas sobre a Ferrogrão têm camuflado outro obstáculo que se colocou no caminho dos trilhos, com a finalidade de minar o principal projeto logístico do País. A ferrovia que, por vocação, poderia mudar radicalmente o mapa nacional do transporte de grãos e ampliar a concorrência logística tornou-se alvo de uma guerra bilionária. Essa oposição ferrenha tem um nome: a Rumo Logística, maior concessionária de ferrovias do Brasil.
Nas últimas três semanas, o Estadão conversou sobre o assunto com 16 pessoas ligadas ao setor, à cúpula do Ministério da Infraestrutura, especialistas em logística, fabricantes do setor ferroviário, associações, grandes produtores rurais e as próprias concessionárias de ferrovias. Todos os agentes que acompanham o projeto foram uníssonos em apontar a atuação da Rumo contra o empreendimento.
A Rumo, empresa logística que pertence ao Grupo Cosan, controlado pelo empresário Rubens Ometto, apoiador de primeira ordem de Jair Bolsonaro, tem atuado constantemente nos bastidores, de forma a questionar a viabilidade da obra, seja por meio de disseminação em meios de comunicação de informações que coloquem em dúvida o retorno financeiro do empreendimento, seja por eventuais impactos a terras indígenas e unidades de conservação que a empresa faz questão de ressaltar. Essa atuação também passa pelo Ministério de Infraestrutura, onde a companhia insistentemente tenta demover o governo da ideia de levar o projeto adiante.
A oposição ao empreendimento, que não tem frequentado seus comunicados oficiais à imprensa e ao mercado, tem uma razão clara: a abertura de concorrência que a nova ferrovia pode gerar sobre os trilhos que a Rumo já administra nas regiões Centro-Oeste e Sudeste do País, jogando o preço do frete pra baixo e consolidando a saída dos grãos pela região Norte do País.
O leilão da Ferrogrão, depois de ser adiado mais uma vez, está previsto para o segundo semestre deste ano. Com seus 933 quilômetros de malha, a Ferrogrão tem previsão de ligar Sinop (MT), centro nacional da produção de soja e milho do País, às margens do Rio Tapajós, em Itaituba, no Pará. Ali, a produção que chegará será retirada dos trens de carga para ser despejada em barcaças, seguindo por uma hidrovia que acessa o Rio Amazonas e, deste ponto em diante, qualquer lugar do planeta.
Outras gigantes ferroviárias e investidores de logística, como a VLI, da mineradora Vale, e o bilionário Fundo Pátria, dono da empresa Hidrovias do Brasil, não escondem o interesse na Ferrogrão. E isso é tudo o que a Rumo não quer.
O que está sobre a mesa é um jogo bilionário. Em março de 2019, a Rumo desbancou a VLI e venceu o leilão da parte sul da Ferrovia Norte-Sul, com um lance surpreendente de R$ 2,719 bilhões. A VLI era vista como a mais forte do páreo, porque já era dona do trecho norte da ferrovia (Porto Nacional (TO) a Açailândia (MA). Ocorre que a empresa ficou a ver navios, com seu lance de R$ 2,065 bilhões. Ao oferecer mais que o dobro do lance mínimo estipulado, de R$ 1,35 bilhão, a Rumo passou a controlar o trecho de Porto Nacional até Estrela D’Oeste. E não ficou por aí.
No fim do ano passado, a Rumo renovou, por mais 30 anos, a concessão da Malha Paulista, trilhos que cortam todo o Estado de São Paulo, até chegar ao porto de Santos. A empresa se comprometeu a injetar mais de R$ 6 bilhões nessa rede. Há ainda uma terceira malha nas mãos da Rumo, a Ferronorte, ou Malha Norte, que liga os trilhos de São Paulo até a cidade de Rondonópolis, em Mato Grosso. Com essa estrutura, a Rumo tem o monopólio ferroviário do transporte de grãos mato-grossense. É neste ponto que a briga pega fogo.
Emissários de Rubens Ometto já recorreram diversas vezes ao ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, para pedir que seja assinada uma autorização que libere a ampliação da Ferronorte, saindo do sul de Mato Grosso, em Rondonópolis, para chegar até Lucas do Rio Verde. Isso significa estar ao lado de Sinop, onde começa a Ferrogrão. Na prática, a empresa quer se antecipar e, com uma canetada de Freitas, espera que o governo libere a construção de uma nova malha de 600 quilômetros de extensão, sem submeter esse novo trecho a eventuais concorrentes interessados em explorar o traçado. Bastaria assinar um “termo aditivo” e pronto. “A pressão é implacável”, resume uma fonte do alto escalão do governo.
Freitas resiste ao pedido, porque sabe que seria questionado judicialmente no dia seguinte à assinatura. Hoje, novas ferrovias só podem ser construídas no País por meio de concessões. Um projeto de lei tramita no Congresso para acabar com o modelo atual e passar a emitir autorizações simples de obras, sob a conta e risco do empreendedor, mas o fato é que hoje isso é proibido.
O posicionamento da Rumo sobre o projeto é de conhecimento de todo o setor ferroviário, produtivo e do governo, tendo se transformado em alvo de reclamações constantes nos bastidores. A reportagem questionou a Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF) sobre o que pensa a respeito da Ferrogrão. Num primeiro momento, a associação, que se classifica como uma instituição “criada para defender e promover o desenvolvimento e aprimoramento do transporte de carga por ferrovia no País”, não se manifestou sobre o tema.
Um dia depois, a ANTF entrou em contato com a reportagem. Não se referiu à Ferrogrão, mas declarou que “apoia iniciativas e projetos que ajudem a promover a expansão da malha ferroviária do País e o necessário crescimento da participação do modal na matriz de transporte de cargas brasileira”.
O Estadão procurou a Rumo e questionou a empresa sobre a forte resistência ao projeto e a pressão que faz sobre o governo para que sua ampliação ferroviária seja aprovada antes da Ferrogrão. O Estadão também questionou a companhia sobre o fato de a Rumo ser constantemente criticada por agir contra o empreendimento. Em sua resposta, a Rumo sequer mencionou o nome da Ferrogrão e ignorou as acusações que faz sobre a nova ferrovia.
“Como maior concessionária de ferrovias do Brasil, a Rumo acompanha com toda a atenção os demais projetos em sua área de atuação, a exemplo de processos de renovação antecipada de outras concessionárias e o anúncio de novas licitações – sem que haja no momento nenhuma definição quanto a eventuais participações”, declarou a empresa.
Ao falar sobre seus próprios projetos, a empresa declarou que “também vem estudando e discutindo investimentos atrelados à renovação antecipada da concessão da Malha Sul e à extensão da Ferronorte, além de projetos portuários que eventualmente tenham sinergia com suas operações”.
Fonte: Abifer, 05/04/2021
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