Nova lei abre espaço para ‘ferrovias de papel’

 O governo Jair Bolsonaro tem celebrado uma onda de investimentos bilionários em ferrovias, desde a criação de um novo marco legal do setor, mas parte dos projetos pertence a empresas com capital social aparentemente incompatível com o porte dos empreendimentos anunciados.

Levantamento feito pelo Valor indica que pelo menos cinco grandes projetos já autorizados ou em análise pelo Ministério da Infraestrutura – com 3,2 mil quilômetros de extensão e quase R$ 50 bilhões em investimentos prometidos – foram registrados por empresas com aporte inferior a R$ 1 milhão.

Uma delas é a Macro Desenvolvimento Ltda., fundada em novembro de 2020, que assinou contratos de adesão para dois novos trechos ferroviários: Presidente Kennedy (ES)-Sete Lagoas (MG) e Sete Lagoas (MG)-Anápolis (GO). Juntos, eles somam 1.326 quilômetros, e a previsão é de R$ 29,6 bilhões em desembolsos, mas a companhia tem um capital social inversamente proporcional à ousadia do projeto: apenas R$ 10 mil.

Independentemente da suposta contradição de valores, as estimativas de investimentos bilionários em torno das novas ferrovias têm sido usadas em solenidades oficiais e nas redes sociais para engrossar a lista de realizações do presidente Bolsonaro, que buscará a reeleição em outubro.

Esses empreendimentos se baseiam na Lei 14.273, aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro do ano passado e sancionada dias mais tarde por Bolsonaro, que permite novas ferrovias pelo regime de autorização.

Por essa modalidade, investidores ficam dispensados de entrar em um leilão e disputar uma concessão pública, muitas vezes percorrendo um caminho que leva anos. Por sua conta e risco, eles podem simplesmente apresentar um projeto ao governo, que assina um “contrato de adesão” caso preencham certos requisitos. A compatibilidade entre o capital social e o porte do projeto não está entre as pré-condições.

Segundo executivos do mercado ouvidos pelo Valor, que preferem falar em caráter reservado, isso tem levado à proliferação das chamadas “ferrovias de papel”. Na prática, são apenas uma espécie de título dado pelo governo – a outorga – que dá às empresas o direito de construir determinada ferrovia. Sem capital suficiente para viabilizar o projeto autorizado, elas correm atrás de investidores (normalmente estrangeiros) que topem injetar recursos e assumir o risco.

Diante das incertezas, aumentam as chances de “mortalidade” de boa parte dos projetos autorizados ou prestes a obter autorização. Apesar disso, o governo argumenta que a nova legislação está transformando o setor. A lei foi precedida de uma medida provisória (MP 1.065), publicada em agosto, que criou amparo jurídico para a apresentação dos projetos.

Assim que foi publicada, a MP das autorizações ferroviárias passou a compor a vitrine de ações do governo federal. No início de setembro, o Palácio do Planalto promoveu uma cerimônia com Bolsonaro para lançar o programa Pro Trilhos, direcionado aos projetos do novo regime de contratações.

Em fevereiro, a Secretaria Especial de Comunicação (Secom), da Presidência da República, anunciou, em sua conta oficial no Twitter, que o Pro Trilhos já apontava para R$ 240,8 bilhões em investimentos, com 79 pedidos da iniciativa privada para criação de novas ferrovias, além de uma expectativa com a geração de 2,6 milhões de empregos.

A postagem provocou reação imediata de bolsonaristas nas redes sociais. Entre elogios a Bolsonaro e ao então ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas (Republicanos), um comentário fala sobre acelerar os planos do setor de “cem anos em três”. Outro apoiador classificou a iniciativa como “incrível!”, mencionando que o orçamento do ministério é de apenas R$ 8 bilhões. “Agora, imagine R$ 240 bilhões de investimentos em ferrovias”, comparou.

A Macro Desenvolvimento, que promete construir as duas ferrovias com 1.326 quilômetros de extensão, apresenta-se como uma empresa “desenvolvedora de projetos e soluções empresariais”, com experiência em iniciativas como um terminal de regaseificação de gás natural liquefeito (GNL) e usinas termelétricas.

Também atua como “parceria estratégica” do Porto Central, projeto que já conta com as licenças necessárias e seria o ponto de chegada da primeira ferrovia. O sócio responsável pela Macro, Fabrício Freitas, disse que novos aportes serão feitos em seu capital social e prevê um prazo de até 12 anos para a implantação dos dois trechos.

“Para o desenvolvimento de um novo projeto, desde o seu primeiro custo, ele deve estar de dentro de um processo estruturado de investimentos e contábil”, afirmou Freitas. “Assinamos os contratos de autorização em dezembro e, a partir de então, todo o capital para o desenvolvimento está sendo aportado dentro da Macro. Sua contabilização, incluindo aumento de capital e aportes, está somente no início.”

“O modelo societário para o investimento está sendo validado pelos acionistas e investidores com base nas orientações jurídicas que estamos recebendo de escritórios especializados, contratados para tal. Iniciamos o projeto no modelo simples de uma empresa limitada, com menos custos, e seguiremos os aportes e adequações no avanço do estágio de cada fase”, afirmou.

As demais empresas com capital social inferior a R$ 1 milhão foram procuradas pela reportagem para comentar seus pedidos ou contratos de autorização, mas não responderam. Uma delas, a Grão-Pará Multimodal, encabeça um projeto avaliado em R$ 5,2 bilhões entre Açailândia (MA) e Alcântara (MA). O traçado ligaria a Ferrovia Norte-Sul até um porto cujas obras ainda não começaram. A empresa foi registrada com capital de R$ 200 mil.

Fonte: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/04/06/nova-lei-abre-espaco-para-ferrovias-de-papel.ghtml

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