Museu Ferroviário amplia paixão por trilhos

Maquete gigante, fotos, réplicas de trens: novo Museu Ferroviário amplia paixão por trilhos

Trem vem do latim “trahere”. Significa tirar ou puxar alguma coisa, arrastar. Vem também de um lugar que palavra nenhuma alcança. O espaço das sobrancelhas arqueadas, das lembranças longas, de histórias ainda não contadas. Visitar o Museu Ferroviário João Felipe é ter certeza de ficar diferente. Passagem só de ida: segure firme que o passeio é intenso.

Um dos mais recentes equipamentos abertos em Fortaleza – inaugurado no último dia 25 de janeiro – está integrado ao Complexo Cultural Estação das Artes e deve proporcionar experiência única aos aficionados pelo universo das ferrovias.

A começar pela grande atração neste primeiro momento: uma maquete de cinco metros retratando o complexo das Oficinas do Urubu – como ficaram conhecidos os locais de manutenção e reparação de locomotivas, vagões e carros, dando suporte à RVC (Rede Viação Cearense). Fomos conferir o trabalho e, de fato, impressiona. Os olhos fazem travessia aérea.

São trens, galpões, tratores, grandes faixas de terra, areia e grama. Tudo em miniatura. A produção iniciou em 2015 e foi feita em tempo recorde: bastou cerca de um ano para ficar pronta. Da vista aérea à planta baixa do complexo, passando por fotografias e medições dos ambientes, um dos recursos mais utilizados para compor o projeto foi a memória.

Legenda: Feita na escala 1:87, maquete presente no equipamento reconstitui as famosas Oficinas do Urubu

Muito desse componente afetivo se desenvolveu com Antônio José Simão, 68. Aposentado da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), continua bastante ativo ao conhecer, como a palma da mão, o ambiente no qual dedicou mais de quatro décadas de vida e ofício. Foi ele o ponto de partida para a criação da maquete, uma vez ser colecionador com vasta experiência e carinho.

“Por ter passado minha vida inteira nesse lugar e vendo tantas mudanças ao longo do tempo, fiquei pensando: ‘Tenho que fazer, tenho que fazer’”, conta. “Mas cadê o dinheiro? Então, comecei a juntar, e pensei que dava certo”. Deu. E ele não esteve sozinho nessa. Junto a seu Simão, estiveram o ferromodelista Cristiano Pires, o maquetista Arlindo Gomes e o desenhista e escultor João Mello. Trupe companheira e inspiradíssima.

Legenda: Seu Simão, aposentado da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), foi idealizador e um dos realizadores do trabalho

Não à toa, o olhar brilhando dos visitantes. É tudo bastante bonito mesmo. Ao estarmos no museu, crianças foram se achegando e confirmando teoria interna: a paixão pelo trem desconhece idade e época. Toma todos pela mão enquanto propõe novos olhares por algo tão próprio da história do Ceará. “Fico muito satisfeito com esse retorno”, vibra seu Simão.

Quem também comemora essa adesão é Cristina Rodrigues Holanda, diretora do Museu Ferroviário João Felipe e curadora da exposição “Ferrovia em miniatura: Memórias das Oficinas do Urubu” – na qual está presente a maquete.

Ela situa que o local onde o trabalho está no momento é a Associação dos Ferroviários Aposentados, organização que ocupava o prédio anteriormente e que vai voltar a ocupar. “É uma ocupação de parceria – Museu do Ferroviário e AFAC. Nessa parceria, abrimos essa exposição sobre o universo ferroviário. Ou seja, ao mesmo tempo em que há uma peça lúdica a respeito do tema, também existe um pedaço da história da ferrovia cearense”.

Legenda: Produção iniciou em 2015 e foi feita em tempo recorde: bastou cerca de um ano para ficar pronta

Isso porque as oficinas do Urubu se desenvolveram a partir da antiga Estação João Felipe. Quando não houve mais espaço para elas no espaço original da estação, se deslocaram para onde hoje é a Avenida Francisco Sá, ainda permanecendo lá – embora não mais administradas pelo Estado, mas por uma empresa concessionária, a Transnordestina.

“As pessoas passam pelos muros do local e têm curiosidade. O bacana, inclusive, é isso: além de conhecer a história do espaço, o público sabe como surgiu, como se desenvolveu e como é hoje. É como se fizéssemos um sobrevoo de helicóptero. Um privilégio”. Seu Simão que o diga: além de ter toda essa importância conceitual, a maquete foi vetor de mudança própria.

Por meio dela, o ferroviário – viúvo e pai de 11 filhos – superou o alcoolismo e fez do próprio lar, no bairro José Walter, uma espécie de casa-museu. Agora vive assim, orgulhoso pelo feito e sempre querendo mais. Para ele, o projeto está em frequente acabamento, tendo em vista as peças que vai incluindo de forma a tudo ficar ainda mais fiel ao lugar original.

Legenda: Crianças se achegam à maquete e confirmam: a paixão pelo trem desconhece idade e época

“Eu não sei de onde vem essa paixão pelo trem – não tenho nenhum parente ferroviário, fui a primeira pessoa da família a trabalhar com isso. Mas o trem me encanta desde criança. Morei no Mucuripe, perto da igreja, e via passar aquela maria-fumaça, aquele negócio todo, muitos fatos históricos”, enumera.

E, enquanto a vista se demora nos pormenores da obra – maquinários, pessoinhas em trânsito, pequenas delicadezas na escala 1:87 – não deixa de comentar qual o cantinho preferido dali, revelando amor insuspeito. Seu Simão é passagem só de ida para a ternura.

“A portaria. Porque, quando eu passava do portão, me sentia em casa. Vinha na ansiedade dentro do ônibus pra chegar. Esperava o dia amanhecer pra poder trabalhar. Nas oficinas, a gente não tinha amigos ou companheiros de jornada, era uma irmandade. Um lugar pra se demorar. Que mais pessoas possam, então, admirar, porque isso aqui é tesouro escondido”.

Ontem no hoje, hoje no amanhã

A maquete, contudo, é apenas uma parte da exposição “Ferrovia em miniatura: Memórias das Oficinas do Urubu”. Também integram a mostra – gratuita e totalmente aberta ao público – um documentário com depoimentos de ferroviários; painéis contextualizando a atividade via trilhos em tempos outros do Ceará; e réplicas de vários tipos de trem. Simbólicas marcações no piso guiam o percurso.

Legenda: Uma das réplicas em miniatura de locomotivas que passavam pela Estação João Felipe

Na parte do maquinário, é possível vislumbrar objetos preciosos. Um que incorpora a Locomotiva a Vapor 408 RVC (um modelo produzido por Francisco Rosa, ex-maquinista); a miniatura de um tanque transporte combustível; e a réplica, em escala 1:25, do famoso e queridíssimo Sonho Azul. O trem fazia o transporte de passageiros e cargas diversas que saíam e chegavam ao Crato diariamente, inclusive em dias de feira.

“É impressionante como essas peças mexem com as pessoas. Elas se emocionam, choram, contam um monte de histórias”, situa Cristina Holanda. “Estou muito feliz por ela ser a exposição que inaugura as atividades do Museu Ferroviário, que vai abrir em breve”. A previsão é de ser ainda no primeiro semestre de 2023.

Legenda: Grandes painéis virtuais com 21 fotografias, apresentadas de forma rotativa, integram a mostra “Memórias da Estação”

Até lá, outra mostra que deve abraçar visitantes – igualmente de curta duração, em cartaz por pelo um mês – é “Memórias da Estação”. Esta fica localizada na entrada da Estação das Artes, bem próxima à Gare. Composta de 21 fotografias apresentadas em painéis virtuais, radiografa alguns dos mais importantes fatos e personagens da Estação João Felipe.

Entre eles, estão José da Rocha e Silva, primeiro maquinista da Estrada de Ferro do Ceará, na década de 1870; o registro da fachada da Estação Central na segunda metade do século XIX; e foto da área interna da própria Gare, outrora utilizada para embarque e desembarque de passageiros, construída também na segunda metade do século XIX.

Legenda: Exposição sobre as oficinas do Urubu estão no prédio onde outrora estava – e vai passar a estar de novo – a Associação dos Ferroviários Aposentados (AFAC)

Para Cristina, “existe um filão legal dentro desse recorte: os encontros de ferromodelismo. Queremos colocá-los na programação anual do Museu. Em Fortaleza, é algo muito particular, a gente quase não vê. Embora as pessoas que trabalham e gostam disso participem de associações, reuniões e até mesmo possuam revistas sobre o tema, no Ceará é muito restrito. Acho que o Museu Ferroviário vai dar esse impulso”.

Nós temos certeza.

Serviço
Exposições “Ferrovia em miniatura: Memórias das Oficinas do Urubu” e “Memórias da Estação”
Em curta duração no Complexo Cultural Estação das Artes (Rua Dr. João Moreira, 540, Centro). Entrada pela Associação dos Ferroviários Aposentados do Ceará (AFAC). Visitação aberta ao público às quintas e sextas, das 12 às 20h; e aos sábados e domingos, das 9h às 15h.

Fotos: Kid Júnior

Fonte: Diário do Nordeste, 08/02/2023

 

Rolar para cima