Em meio às constantes falhas na operação dos trens — ontem 11 estações do ramal de Saracuruna ficaram fechadas por nove horas devido a problemas na rede aérea, prejudicando 20 mil passageiros —, o governo do estado planeja abrir nos próximos dias um processo administrativo para decretar a caducidade (extinção) do contrato de concessão. O principal argumento, segundo fontes do Palácio Guanabara, será que a SuperVia descumpriu cláusulas de um aditivo ao contrato de concessão firmado em 2010 pelo então governador Sérgio Cabral. Na ocasião, a empresa se comprometeu a investir R$ 1,2 bilhão (valores da época) na automação de todo o sistema de sinalização, que controla a velocidade dos trens, entre outras ações para modernizar o sistema.
Foto: SuperVia
Em troca dos novos gastos, a concessão, que expiraria em 31 de outubro deste ano, foi prorrogada por mais 25 anos, até outubro de 2048.
Procurada, a SuperVia não se manifestou alegando que não foi notificada da decisão. Enquanto não realiza uma nova concessão, o estado avalia duas alternativas para a operação não ser paralisada. Uma delas é criar uma estatal para recontratar os funcionários da concessionária. A outra é escolher uma empresa para operar provisoriamente o serviço ferroviário, que seria retomado pelo estado com a extinção do contrato atual.
Liminar cassada
O processo já era para ter começado, mas em julho a juíza da 6ª Vara Empresarial do Rio, Maria Cristina de Brito Lima, concedeu uma liminar que proibia o estado de tomar qualquer atitude que interrompesse a concessão, em processo que corre em sigilo de Justiça. No último dia 8, porém, o presidente do Tribunal de Justiça (TJRJ), desembargador Ricardo Rodrigues Cardoso, cassou a decisão: “Incumbe ao estado impor sanções à concessionária, intervir na prestação do serviço e extinguir a concessão nos casos previstos em lei, inclusive decretando a caducidade ou a encampação do serviço público de transporte ferroviário”, escreveu o presidente do TJRJ.
No processo de caducidade, uma das fundamentações serão as conclusões de uma auditoria feita pela Agência Reguladora de Transportes Públicos (Agetransp), que, em abril de 2022, multou a SuperVia em R$ 2,2 milhões por descumprir cláusulas do aditivo de 2010. Entre as obrigações contratuais que deixaram de ser feitas estava, justamente, modernizar o ramal de Saracuruna, que teve uma pane ontem, inclusive duplicando o leito para os trens rodarem com mais velocidade e em intervalos menores.
Especialistas avaliam que, seja qual for o modelo de operação, são muitos os desafios para quem for assumir a operação dos cinco ramais e 104 estações que transportam cerca de 320 mil pessoas por dia em 201 trens.
— A questão é muito complexa. A operação de trens exige mão de obra especializada. Um novo operador teria que recrutar e treinar mão de obra. Se recontratar funcionários que forem demitidos da concessionária, tem que avaliar se não há o rico de o estado herdar também os passivos trabalhistas — avalia o engenheiro Marcus Quintella, diretor do Centro de Estudos da FGV Transportes.
Professor aposentado do programa de Engenharia de Transportes da Coppe/UFRJ, Ronaldo Balassiano entende que alguma medida tem que ser tomada, porque as falhas da SuperVia comprometem qualquer tentativa de racionalização do transporte público da Região Metropolitana. Com os tropeços operacionais, a demanda dos trens acaba oscilando no dia a dia.
— O problema não se explica apenas por furtos de cabos. A operação da SuperVia é ruim há muitos anos. Existe um contrato que tem que ser cumprido — diz Balassiano.
Registros crescem
A empresa registrou 458 ocorrências de interrupção dos trens entre janeiro e junho deste ano, um aumento de mais de 50% em relação mesmo período do ano passado (280). Janeiro de 2023 foi o mês com mais transtornos: 119. Mas agosto deve superar todos os números anteriores: SuperVia diz que já houve 185 impactos na operação “devido a indícios de furto de cabos”.
O principal motivo dessas paralisações, segundo a Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes (Agetransp), é a avaria da via permanente: só de janeiro a junho de 2023, foram 143 interrupções. Em seguida, vêm problemas no sistema elétrico e fatores externos.
A agência alegou que ainda não concluiu o levantamento sobre as multas aplicadas à concessionária que opera os trens suburbanos. De acordo com a Rádio CBN, porém, entre 2017 e 2022, foram aplicadas 63 multas à SuperVia, num total de R$ 10,6 milhões. O órgão confirma que a SuperVia é a concessionária mais multada, mas não informou quais as cláusulas do contrato com o estado que ela vem descumprindo.
A queda de braço entre o estado e a concessionária se arrasta há meses, enquanto os serviços continuaram a se deteriorar, agravado pelos furtos de cabos e outros insumos. A avaliação do estado é que, independentemente das ocorrências, a concessionária não seria ágil para retomar os serviços.
Em abril deste ano, representantes da Gumi, braço brasileiro do grupo japonês Mitsui, que desde 2019 tem o controle acionário da Supervia, informaram ao estado que não tinham mais interesse em prosseguir na operação. Eles alegavam a falta de condições de investir mais no sistema, além do R$ 1 bilhão que aplicaram no sistema desde que assumiram a concessionária. O problema é atribuído à queda de passageiros durante a pandemia.
Diante disso, o governo até concordou em repassar à SuperVia R$ 216 milhões para cobrir perdas com a Covid-19 em 2020. Mas o repasse não cobriu outras reivindicações da empresa como o ressarcimento de gratuidades, passivos trabalhistas herdados da Flumitrens e perdas causadas pelo congelamento de tarifas.
Especialista em direito público, o advogado Sérgio Camargo diz que é preciso levar em consideração outros fatores, além da queda de usuários durante a pandemia:
— Há questões que não são de responsabilidade da concessionária, como o furto de cabos, que é um problema de segurança pública.
Fonte: O Globo, 18/08/2023