O Marco Legal das Ferrovias, desde antes de sua sanção, tem gerado expectativas, pelo potencial de impulsionar a desejada expansão da malha ferroviária e um melhor balanceamento da matriz de transportes de carga, sabidamente concentrada no modal rodoviário. Uma das principais inovações é a possibilidade de exploração de ferrovias em regime privado, por meio de outorga de autorização, em procedimento mais simples e eficaz, quando comparado com as concessões, e menos oneroso para o Estado e para os cofres públicos, quando comparado com a exploração direta de tal atividade.
O interesse da iniciativa privada mostrou-se intenso já durante a vigência da MP 1065, de 30 de agosto de 2021, com o protocolo de 81 requerimentos de outorga de autorização, seguidos por mais de 100, com a sanção da Lei 14.273, de 23 de dezembro de 2021[1]. Contudo, desde o início, há problemas na concretização dessa política pública. Cita-se o fato de no regime de autorização não ser trivial definir os critérios de desempate para requerimentos concorrentes de privados em relação a trechos com origem e destino coincidentes.
Foi justamente nesse contexto que se iniciou a participação do Tribunal de Contas da União (TCU) acerca da temática das autorizações ferroviárias. O tribunal tratou da questão da priorização das outorgas de autorização de acordo com a ordem de apresentação da documentação completa de requerimento e apontou como uma das medidas o acompanhamento dos pedidos de autorização específicos de pares origem-destino idênticos, para analisar a viabilidade de coexistência, eventuais critérios técnicos para definição de quais projetos serão autorizados e quais deverão sofrer adequações para se viabilizarem.
Na sequência, a Corte de Contas iniciou acompanhamento das ações do governo para a implementação da Lei 14.273/2021. Assim, o acórdão 1617/2023, do último 9 de agosto, teve como objetivo “contribuir para a eficiência da política pública relativa às Autorizações Ferroviárias, por intermédio do exame de aderência dos procedimentos do MInfra e da ANTT às disposições legais e normativas concernentes: 1) ao estabelecimento de diretrizes da Política Nacional de Transporte Ferroviário; e 2) ao recebimento e análise de requerimentos de autorização para exploração de serviços ferroviários”.
O voto apresentado pelo ministro relator concentra-se nos achados da fiscalização, sobretudo, nas deficiências relativas à compatibilização do regime de autorizações com a Política Nacional de Transporte Ferroviário, que podem ser assim resumidos: 1) ausência de institucionalização de diretrizes da Política Nacional de Transporte Ferroviário, em decorrência de lacunas que precisam ser suprimidas pelo Ministério dos Transportes, sob pena de comprometer os objetivos do novo marco legal ferroviário; 2) ausência de avaliação individualizada sobre a compatibilidade de cada requerimento de autorização com a Política Nacional de Transporte Ferroviário; e 3) deficiências na governança da política pública do setor ferroviário, relacionadas à demora na análise de vetos à Lei 14.273/2021 (Mensagem de Veto 726/2021) pelo Congresso Nacional.
Em decorrência dos achados, a área técnica submeteu à consideração do plenário do tribunal as seguintes propostas de recomendação: 1) que o Ministério dos Transportes estabeleça um planejamento para instituir diretrizes da Política Nacional de Transporte Ferroviário; 2) que o ministério, juntamente com a ANTT verifiquem a pertinência de revisar o procedimento de avaliação de compatibilidade dos requerimentos com a Política Nacional de Transporte Ferroviário, para avaliar a adequação das peculiaridades dos casos concretos; além de 3) enviar ao presidente do Congresso Nacional, para simples ciência acerca das consequências da demora na apreciação do Veto 726/2021.
Formalmente, a única recomendação presente no acórdão do plenário do TCU foi direcionada à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), com intuito de contribuir para o aperfeiçoamento em termos de economicidade, eficiência e efetividade. Recomendou-se que a agência revise os seus procedimentos de análise da convergência do objeto do requerimento de autorização ferroviária com a política pública do setor ferroviário. Ou seja, que desenvolva um meio de avaliar se requerimentos de autorização protocolados tenham sinergia com o sistema como um todo, com o intuito de conferir maior eficiência e, para tal, deve considerar as particularidades do caso concreto.
Diz ainda a recomendação, que consultas ao órgão ministerial sejam feitas, sempre quando necessárias, para esclarecer dúvidas relativas à convergência com a política pública, mandamento, inclusive, presente no próprio Marco das Ferrovias (Lei 14.273/2021) e reconhecido pela ANTT através da Resolução 5.987/2022, que disciplina o processo administrativo de requerimento de autorização, como apontou o tribunal. Importante mencionar que, dada a natureza de recomendação do apontamento feito pela Corte de Contas, cabe à ANTT, como unidade jurisdicionada no caso, avaliar a conveniência e a oportunidade de implementá-las.
A fiscalização realizada pelo tribunal trouxe luz para algumas questões que, sem dúvidas, são gargalos na execução dessa política pública. Apesar das autorizações já serem realidade em diversos setores da infraestrutura, como, por exemplo, energia, telecomunicações e portos, é uma novidade no setor ferroviário. Assim, a busca por melhorias com certeza é bem-vinda.
Os achados apontam para a necessidade de o Estado se preocupar com uma convergência mais ampla entre os dois modelos, de autorização e de concessão, o que trará benefícios para o setor. Além disso, observa-se a alta subjetividade na definição de “compatibilidade com as políticas públicas do setor”, que ao fim e a cabo, são de discricionariedade da ANTT.
O grande ponto de destaque aqui é o sinal, dado pela corte de contas, de que não entende que as autorizações possam ser outorgadas pelo Estado de forma amplamente livre, como era esperado por alguns, até pela natureza de direito privado dessas atividades. Isto é, vê-se que, ainda que de com uma maior leveza regulatória e com procedimentos mais simplificados de acesso pelo investidor interessado, o TCU pretende cobrar, também das autorizações, uma convergência com um plano mais amplo para o setor, que deve ser definido pelo Executivo, no âmbito de suas competências.
O diálogo com o controlador pode ser positivo, mas com alguns cuidados, de lado a lado. Mantendo-se o TCU no seu papel, de auxiliar do Poder Legislativo na sua atribuição constitucional de fiscalização e zelo pelos gastos públicos e pela melhor execução de políticas públicas, o acompanhamento é salutar para o avanço na implementação desse novo modelo de autorizações ferroviárias, em sua conexão com o todo setorial. O que cabe ao tribunal é seguir com a colaboração técnica, tanto com o ministério setorial, quanto com a agência reguladora, no sentido de apontar deficiências e eventuais sugestões de caminhos de melhorias. À administração, por sua vez, cabem as decisões políticas e sua execução, sempre pautada pela legalidade e pela perseguição do interesse público. O que não cabe é o controlador buscar substituir a administração em sua atribuição ou a administração deixar de levar em conta os valorosos apontamentos trazidos pelo controlador, no desempenho de suas competências legais e constitucionais.
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Por fim, vale mencionar que há alguns pontos que podem ser regulados de forma mais detalhada e precisa nesse novo arranjo legal, para trazer maior segurança jurídica, tanto para as autorizações, quanto para outras formas de exploração do serviço ferroviário de carga e mesmo para terceiros impactados pelo modelo. Além do tema da convergência entre os modelos com a política pública setorial mais ampla, o Ministério dos Transportes e a ANTT precisarão trabalhar em meios de interação concreta entre ferrovias autorizadas e concedidas, lidando com conexões e interferências de vias, por exemplo, além de prever eventuais impactos nos modelos de negócios demandados e em curso.
Adicionalmente, há o tema da carga regulatória dos dois modelos, que precisa ser avaliado e bem sopesado pelo regulador, sem gerar restrições e impactos excessivos, por um lado, ou desequilíbrios econômico-financeiros por outro. Nesse aspecto, vale destacar que a Lei 14.273/2021 também positivou que as normas técnico-operacionais poderão ser estabelecidas por uma entidade privada, composta pelas autorizatárias e concessionárias, cuja fiscalização pelo regulador estatal também é um desafio.
Ainda, pode-se apontar para a questão do domínio da terra em que correrá o leito da ferrovia, tendo em vista que o modelo de desapropriação por interesse público, desenvolvido para concessões, parece não dialogar bem com o modelo de autorização para ferrovias privadas, o que requererá da agência um procedimento específico, que leve em conta as especificidades desse novo modelo, assim como os interesses e direitos de desapropriados para a implementação de ferrovias autorizadas. Por fim, cabe ao Estado ainda arquitetar qual será o papel das autorizações nesse amplo e complexo setor, direcionando-as, por exemplo, para solucionar a questão de pequenos trechos novos ou para trechos que não têm viabilidade econômica dentro do modelo regulatório das concessões.
Ou seja, com o acórdão e sua sinalização de sequência da fiscalização, também do novo modelo de autorização ferroviária, o tribunal dá o tom das possibilidades, mas também das condições, para que essa ferramenta de grande potencial possa vir a ser executada de forma eficaz para os objetivos relacionados ao transporte de carga por trilhos. Como observado, as interações entre o controlador e o poder executivo podem render bons frutos, desde que respeitados os limites e competências de atuação de cada um dos órgãos. Que o diálogo siga propositivo e construtivo.
Fonte: Jinfo/opinião, 24/08/2023