Ferrovias encolhem no estado e trilhos sumiram

Com 73 anos, 50 deles vividos numa casa próxima à estação de Lídice, distrito de Rio Claro, o pintor Gonçalves Divino é do tempo em que o ritmo da ferrovia que passava por ali era intenso. Havia o cargueiro e o Trem da Mata Atlântica, para turistas. Com a concessão dos serviços da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), em 1996, Divino começou a sentir falta do barulho. A composição de visitantes parou de funcionar, e a que transportava produtos operou pouco e só até o início dos anos 2000.

— No começo, tinha dificuldade de dormir com o apito, mas depois me acostumei. Agora, tenho uma saudade — suspira ele, olhando para o que sobrou: a estação parcialmente invadida, trilhos abandonados e dois vagões, ainda com a logomarca da RFFSA, enferrujando.

O que se vê em Lídice é uma amostra do que ocorre com a malha concedida à Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) no estado, ligando municípios fluminenses a Minas Gerais e ao Espírito Santo. Ela encolheu, e não foi pouco. Dos 802 quilômetros de linhas que em 1996 passaram a ser administrados pela empresa (atualmente pertence a VLI), hoje apenas 46 quilômetros (5,7%) operam entre Barra Mansa/Volta Redonda e a estação de Falcão, em Quatis. Outros138 quilômetros (de Caxias a Paraíba do Sul) foram devolvidos à União em 2013, segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).

 

Foto: Custódio Coimbra – O Globo

 

Nos 618 quilômetros inoperantes restantes sob concessão, há trilhos que despareceram: foram furtados ou encobertos por construções ou pela mata. Margens de segurança de via viraram ciclovia e pistas. E, sem manutenção, antigas estações — à exceção de algumas cedidas a prefeituras — sumiram, estão depredadas ou foram invadidas.

Ferrovia cortada

No trecho de pouco mais de cem quilômetros que vai do Centro de Angra a Barra Mansa, a estação do porto virou centro turístico da prefeitura, e o pátio de manobra de trens, estacionamento. No percurso, vêem-se trilhos beirando ciclovia e casas, cruzando ruas e cortando a serra e fazendas.

— Havia 16 túneis até Lídice. Um desabou. Hoje são 15, mas o acesso é só por trilha — conta o engenheiro Manoel Francisco de Oliveira, morador de Angra, que implantou o Trem da Mata Atlântica e o Trem Azul (entre Conrado e Miguel Pereira), que pararam de funcionar quando as linhas de carga foram concedidas: — O trem turístico só se viabiliza se a via férrea, que tem um custo alto de manutenção, é compartilhada com o transporte de carga.

Ainda em Rio Claro, próximo ao número 315 da Rua Antônio Grijó Filho, o viaduto da ferrovia que cruzava a via foi cortado para permitir a circulação de caminhões mais altos.

Ao chegar à estação de Barra Mansa, as vias de bitola métrica (1m de largura entre os trilhos) e larga (até 1m60), da FCA e da MRS Logística, respectivamente, passam lado a lado. A partir de Barra Mansa e até Quatis, mesmo sendo operacional, o ramal da FCA não escapou do descaso. A estação de Joaquim Leite, em Quatis, por exemplo, não tem portas, janelas, nem chão. E o mato cresce dentro da construção.

Num pedaço da estação de Falcão, Roseli Rocha Marcolino de Souza e o marido Antônio de Souza se instalaram há dez anos.

— Em vez de pagar aluguel, pintamos, cuidamos. Deixaram a gente ficar. Olha como está diferente do resto da casa — aponta Roseli para a parte trancada e com a aparência de estar infestada de cupim.

Do outro lado do Rio de Janeiro, no percurso que vai de Visconde de Itaboraí a Itabapoana, em direção a Vitória, muitos trilhos desapareceram. Já a estação de Visconde de Itaboraí está em ruínas. Rosileila Rodrigues Novaes e a amiga Márcia Guilherme Porto moram em frente. As duas usaram o trem para ir ao trabalho até ele acabar (1996).

— Chegaram a construir em cima dos trilhos — lamenta Márcia.

Em Cesário Alvim, distrito de Silva Jardim, a linha férrea passa em frente à casa onde o aposentado José Luiz Vasconcelos dos Santos mora com a esposa, Maria da Graça. Ele plantou uma aroeira entre os trilhos e corta o mato:

— Passei a cuidar. Quero que fique bonitinho.

A parcela de vias devolvidas à União também está sucateada, afirma Delmo Pinho, consultor ferroviário da Federação do Comércio do Rio de Janeiro (Fecomércio). Ele participou de reunião da Frente Parlamentar Pró-Ferrovias Fluminense, da Assembleia Legislativa. E reclama de o valor da indenização de R$ 234 milhões, paga pela VLI ao governo, não ter sido aplicado no Rio:

— A verba foi toda capitalizada para o metrô de Belo Horizonte.

Parte desse trecho, a estação de Paes Leme (Miguel Pereira) ganhou um puxadinho, e lá vivem três famílias. Mangueiras não existe mais. Em Conrado, não se acham mais trilhos, e a estação tem uma locomotiva dentro para lembrar um acidente de anos atrás. Em Santa Branca, não há estação nem trilhos, e a ponte de ferro, de 1941, hoje é usada por carros. Já a estação de Vera Cruz sumiu, e o viaduto Paulo de Frontin, considerado o único do mundo com estrutura de ferro em arco, está sem uso.

Novas iniciativas

Na tentativa de aproveitar nem que sejam 4,5 quilômetros entre Governador Portela e o Centro de Miguel Pereira, a prefeitura reformou 4,5 quilômetros de trilhos e duas locomotivas, com mais de 120 anos, e quatro carros doados pela Fecomércio. E quer implantar um trem de turismo.

— Queremos comprar mais carros para ter pelo menos 15. Aguardamos que sejam feitas vistorias, para podermos pôr a linha para funcionar até o fim do ano — diz Alessandro Fonseca, secretário de Turismo de Miguel Pereira.

Outra iniciativa é da Splenda Port, que opera o Porto de Angra, e do Porto Seco Sul de Minas, em Varginha. As empresas estão negociando com o Ministério dos Transportes e a ANTT a reativação da ligação entre Angra e Barra Mansa, uma vez que a VLI tem intenção de devolver mais 1,7 mil quilômetros administrados pela empresa no país. Segundo Leandro Cariello, sócio do Splenda Port, o dinheiro da indenização poderia ser usado na recuperação da linha de Angra.

— Angra poderia receber produtos agrícolas, sobretudo café, de Varginha, e exportar fertilizantes e maquinário — explica Cariello. — Com R$ 300 milhões, seria possível recuperar o trecho desativado. O mais difícil, hoje, seria conseguir licença ambiental para cortar a Serra do Mar, mas a ferrovia já passa por lá. A serra está cortada.

A próxima reunião da Frente Parlamentar Pró-Ferrovias Fluminense será no dia 15. Coordenador da frente, o deputado Luiz Paulo (PSD) considera fundamental incluir os ramais ferroviários no Plano Estratégico de Desenvolvimento Econômico Social (Pedes), que está sendo elaborado pelo estado, bem como na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), a ser apresentada no fim deste mês à Alerj:

— A reativação da malha ferroviária é importante para o desenvolvimento do Rio de Janeiro.

Segundo a ANTT, o estado tem hoje 664 quilômetros de ferrovias concedidos à FCA. A MRS possui 441 quilômetros, todos operacionais, interligando o Rio a São Paulo e Belo Horizonte.

A ANTT informa que a VLI “tem sido multada por várias infrações em toda a malha sob sua responsabilidade”, por descumprimento de obrigações contratuais. A sua concessão vai até 2026.

A VLI explica que a devolução de trechos da FCA comprovadamente antieconômicos é uma obrigação prevista no próprio contrato da concessão e se dá mediante pagamento de indenização. Acrescenta que estão mantidas operações regulares no Rio de Janeiro, atendendo a segmentos como siderurgia e construção. No trecho operacional, conforme a empresa, passam em média cinco composições por dia, com até 56 vagões cada. Em relação a trechos não operacionais, a VLI esclarece que a utilização da malha ferroviária leva em consideração “estudos amplos e profundos sobre a viabilidade econômica”.

Fonte: https://oglobo.globo.com, 11/09/2023

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