Cemitérios de trens, barcos e aviões em São Paulo

Cemitérios de trens, barcos e aviões escondem histórias em São Paulo

“Se eu perder esse trem que sai agora, às 11 horas, só amanhã de manhã”, escreveu Adoniran Barbosa no clássico de 1964. O trem ao qual o compositor se refere, na verdade, partia às 22h59, de uma estação na Zona Norte de São Paulo onde hoje está abrigada a sede de uma transportadora. Nada mais sobrou da linha férrea que levava passageiros da capital paulista a Guarulhos, na região metropolitana. Uma maria-fumaça igual à que estampou a capa do vinil dos Demônios da Garoa até pouco tempo atrás estava largada em meio ao mato alto numa fábrica desativada à beira da Rodovia dos Bandeirantes. Destino semelhante tiveram vagões e locomotivas que até hoje se empilham às margens de um pátio operado pela empresa Rumo em São Vicente, na Baixada Santista.

— Isso aqui junta água, vira um ninho de mosquitos, e tem muita cobra. Eu morro de medo e brigo com as crianças toda vez que elas inventam de brincar perto dos trens — reclama Walter Hermes Alves Marinho, de 61 anos, que mora em frente a um dos vagões enferrujados que um dia circularam pelos trilhos que levam ao Porto de Santos.

O local se transformou numa espécie de cemitério de trens, título que se justifica também pela presença de urubus e pelo cheiro de carniça que empesteia o lugar — resultado da decomposição da soja que vaza de alguns vagões, seja por defeito das composições ou por obra de ladrões que danificam as comportas na tentativa de roubar as cargas. Alexandre da Silva, que passou seus 38 anos como vizinho do Pátio Ferroviário Paratinga, diz que as dezenas de trens visíveis em meio ao mato são apenas a “ponta do iceberg”, já que incontáveis outras já foram engolidas pela vegetação ao longo das últimas décadas.

Cemitério de trens em São Paulo

Locomotiva abandonada no Pátio Ferroviário Paratinga, em São Vicente — Foto: Maria Isabel Oliveira

Locomotiva abandonada no Pátio Ferroviário Paratinga, em São Vicente — Foto: Maria Isabel Oliveira

Cozinha industrial no interior de vagão abandonado no Pátio Ferroviário Paratinga — Foto: Maria Isabel Oliveira

Cozinha industrial no interior de vagão abandonado no Pátio Ferroviário Paratinga — Foto: Maria Isabel Oliveira

Vegetação encobre trem abandonado em São Vicente — Foto: Maria Isabel Oliveira

Vegetação encobre trem abandonado em São Vicente — Foto: Maria Isabel Oliveira

Locomotiva descartada em São Vicente — Foto: Maria Isabel Oliveira

Locomotiva descartada em São Vicente — Foto: Maria Isabel Oliveira

— Os trens entraram em declínio no Brasil inteiro a partir da década de 1950, quando teve início um grande desenvolvimento industrial em que se priorizou o transporte por caminhões. São Paulo tinha trens de passageiros de nível europeu, com modelos de luxo que saíam da Barra Funda para o Rio de Janeiro. A gente regrediu nesse sentido. O poder público abriu mão e tudo foi roubado, sucateado. Parte dessa memória da cidade foi apagada — diz o pesquisador e historiador Douglas Nascimento.

A restauração de trens antigos hoje fica a cargo principalmente de grupos organizados da sociedade civil. Ainda é possível passear em vagões do século passado num trecho curto em Perus, na Zona Norte da capital, ou em Paranapiacaba, em Santo André, no ABC Paulista.

Nova chance para aviões descartados

O governo do estado pretende agora inaugurar um trem de passageiros que conecte São Paulo a Campinas, cidade a pouco menos de 100 quilômetros da capital paulista. Ali, próximo ao Aeroporto de Viracopos, o empresário Vitorio Bim, de 71 anos, se dedica a dar vida nova a outro tipo de engenhoca: aviões inutilizados.

Dono de um mercadão de sucata, Bim comprou em 2020 seu primeiro avião, um pequeno bimotor, e o colocou em frente ao seu depósito. Alguns clientes começaram a perguntar se ele vendia fuselagens, o que despertou no empresário a ideia de entrar para esse negócio. Comprou dois modelos da Embraer que pertenceram à extinta Varig e entrou em leilões para adquirir aviões de outras companhias que deixaram de existir ou pararam de operar no Brasil, como Fly Linhas Aéreas e Avianca. Um Boeing 727 com capacidade para mais de 100 passageiros hoje está estacionado em uma de suas chácaras, servindo como restaurante para os visitantes.

— Já comprei aviões até no Ceará, dá um trabalho danado para transportar. Ano passado, vendi 11, já neste ano está um pouco mais fraco, foram seis. As pessoas compram para fazer casa, para decorar chácaras, até para fazer brinquedos para shoppings. Aqui mesmo tenho um que alugo para fazerem filmagens, vem muita gente interessada. Sempre fui apaixonado por aviões, acho que todo mundo é um pouco, né? — conta Bim, que tem hoje 13 fuselagens à venda em seu depósito.

Aviões da Embraer e Boeing jazem em depósito de sucatas em Campinas — Foto: Maria Isabel Oliveira

Aviões da Embraer e Boeing jazem em depósito de sucatas em Campinas — Foto: Maria Isabel Oliveira

Cabine de comando de um Boeing 727 que pertenceu à Fly Linhas Aéreas — Foto: Maria Isabel Oliveira

Cabine de comando de um Boeing 727 que pertenceu à Fly Linhas Aéreas — Foto: Maria Isabel Oliveira

Painel e turbina de avião descartados em depósito — Foto: Maria Isabel Oliveira

Painel e turbina de avião descartados em depósito — Foto: Maria Isabel Oliveira

Cemitério de navios centenários

Enquanto trens e aviões perecem a céu aberto em território paulista, navios e embarcações menores jazem submersos no litoral do estado. As histórias de navios fantasmas ali não são como as da Baía de Guanabara, onde dezenas de barcos estão à deriva.

O Porto de Santos, o maior da América Latina, tem sua história recheada de descobertas de veleiros e outras embarcações que naufragaram ao longo das décadas. Os destroços de um navio que pegou fogo em 1974 ocuparam um trecho de um dos canais que dão acesso ao porto por quase 40 anos, até serem finalmente removidos em 2013. No período em que ficou ali, impediu que duas embarcações trafegassem pelo canal ao mesmo tempo, o que reduzia a capacidade operacional do porto.

Também em Santos, os destroços de um veleiro inglês encalhado em 1895 na orla da praia se tornam visíveis sempre que a maré baixa — podem também ser vistos a partir da leitura de um QR code instalado na praia que permite explorar a embarcação em realidade aumentada. A presença dos vestígios da antiga embarcação fizeram o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) transformar o local em sítio arqueológico.

Veleiro inglês encalhado em 1895 reproduzido em realidade aumentada, em Santos — Foto: Divulgação/Prefeitura de Santos

Veleiro inglês encalhado em 1895 reproduzido em realidade aumentada, em Santos — Foto: Divulgação/Prefeitura de Santos

Procurada pelo GLOBO, a empresa Rumo, que opera o Pátio Ferroviário Paratinga, disse que o “fluxo interno para dar destinação” aos vagões abandonados “está em andamento”. Disse que “os bens estão em áreas operacionais concedidas que ficam afastadas da zona urbana e que, assim que finalizados os processos, serão retirados do local”.

Fonte: O Globo, 06/10/2023

Foto principal: Locomotiva abandonada em pátio operado pela empresa Rumo em São Vicente, na Baixada Santista – Maria Isabel Oliveira

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