Em dez anos, transportes coletivos do Rio perderam um bilhão de usuários
O Globo – “A gente perde tempo de vida”, resume quem enfrenta duas horas e meia — quase sempre em pé — de casa até o trabalho nos transportes públicos do Rio. No caminho da Baixada Fluminense à Tijuca, Simone Coelho de Almeida, de 48 anos, é um dos rostos numa multidão que não esconde o cansaço de viagens em veículos lotados, sujeitas à insegurança e que, devido à ineficácia dos serviços, demoram mais do que o necessário. Nos últimos 15 anos, ela assistiu a transformações como a criação dos corredores exclusivos para ônibus, a expansão do metrô para a Barra, os BRTs, o VLT e, mais recentemente, a inauguração do moderno Terminal Gentileza, na Zona Portuária da capital. São investimentos que impactaram positivamente na rotina de parte da população. Mas que, até agora, foram insuficientes para outras milhões de pessoas, muitas delas que, literalmente, adoecem diante do “caos nosso de cada dia”.
Os desvios de rota que colocaram o Rio nessa encruzilhada e as possíveis saídas para melhorar a mobilidade urbana são temas de uma série de reportagens iniciada hoje pelo GLOBO. Nas ruas, sobre trilhos ou navegando nas águas da Baía de Guanabara, a população depende de um sistema de transportes que especialistas e até empresários do setor consideram pouco conectado, que se espalha pelas cidades de forma desorganizada e que tem integrações tarifárias falhas. Aliada a outros fatores, como oscilações da economia, a consequência se evidencia na redução do número de usuários: em uma década, a quantidade de viagens nos transportes intermunicipais e da capital despencou quase pela metade (42,38%), o que representa cerca de um bilhão de passageiros a menos.
Esse efeito, afirmam integrantes do setor, também seria umas das causas para a precarização de alguns dos serviços, ao provocar uma queda de receita das empresas. Se há uma janela de oportunidades para buscar soluções, no entanto, o momento é agora. Entre este ano e o próximo, estão previstas novas licitações para trens, linhas de ônibus da cidade do Rio e para as intermunicipais. Nas barcas, uma nova concessionária assume a operação mês que vem. E ainda há os debates sobre a bilhetagem eletrônica, com a do cartão Jaé na capital.
Para Simone, moradora de Piabetá, em Magé, as melhorias seriam um alento para seu suplício cotidiano, parte dele nos engarrafamentos da Avenida Brasil.
— Não fosse isso, daria para fazer muita coisa. Eu descansaria mais, dormiria mais e não passaria o fim de semana arrumando a casa — diz a faxineira, que precisa pegar três conduções para ir e outras três para voltar do trabalho.
Não bastassem longos trajetos, passageiros convivem com a falta de pontualidade. Também morador de Magé, o pedreiro Antônio Gomes, de 58 anos, sai às 4h de casa e espera pelo menos uma hora para embarcar na primeira de três conduções para chegar, por volta das 8h, a Copacabana, na Zona Sul do Rio. Com o andar mais lento, não se importa com a correria de quem passa às pressas por ele até a roleta do metrô da Central. São quase sete horas por dia se deslocando.
— Acordo às 3h30 para pegar um ônibus de Andorinhas, região onde moro, até o centro de Piabetá. Só tem um ônibus, que demora muito a passar. Fico uma hora esperando. Na volta não tem horário para chegar. Às vezes, às 20h. Outras, às 21h — conta.
Impacto na saúde
Um estudo coordenado pela Coppe/UFRJ, concluído no fim do ano passado, mostra que os longos percursos entre casa e trabalho têm reflexos na saúde desses passageiros. Mais de 54% dos 2.798 entrevistados afirmaram que o tempo de deslocamento afeta negativamente sua qualidade de vida, com reflexos no humor, no bem-estar físico e mental e na produtividade. Os principais sintomas citados foram dor de cabeça (por 32%), dores no corpo (21%) e ansiedade (19%).
— São horas em que a pessoa deixa de ter convívio familiar, tempo de lazer, esporte. Isso vai gerar problemas psicológicos e físicos que vão pressionar a rede pública de saúde. É um ciclo vicioso — diz Glaydston Ribeiro, que coordenou a pesquisa, com o apoio da Semove (ex-Fetranspor).
A violência urbana é outro fator preocupante. Devido aos tiroteios, segundo a SuperVia, a circulação de trens foi interrompida 16 vezes no ano passado, e 17 em 2023. Além disso, nos dois últimos anos, a concessionária contabiliza ainda mais de 147 mil metros de cabos furtados, o que provoca paralisações e atrasos.
Na última quinta-feira, a empregada doméstica Cristiane da Silva Valente ficou 40 minutos na Central do Brasil esperando que fosse normalizada a linha para o trem sair.
— Acontece com frequência. Estou cansada, viajo em pé, espremida, e ainda demoro mais porque roubaram cabos ou tem tiroteio — lamentou a moradora de Nova Iguaçu.
Usuários de ônibus também sentem na pele a insegurança. Números do Instituto de Segurança Pública (ISP) contabilizam 6.275 assaltos em coletivos em 2024, 794 (14%) a mais do que o ano anterior. Uma experiência que a diarista Priscilla Florêncio, que mora no bairro Santa Rita, em Nova Iguaçu, e trabalha na Zona Sul do Rio, já viveu quatro vezes no ônibus da linha 492b (Vila de Cava-Central):
— Perdi quatro celulares e dinheiro voltando para casa à noite. Eu me sinto muito insegura, um medo total. A gente sai de casa pedindo a Deus para ir e voltar em segurança.
Assaltos à parte, Semove e Rio Ônibus (sindicato das empresas do Rio) afirmam que o estado teve, em média, um ônibus incendiado de forma criminosa a cada oito dias entre 2014 e 2024. Foram 432 veículos atacados e destruídos em uma década.
Como sintoma dos problemas, especialistas apontam a fuga de passageiros para alternativas mais seguras, rápidos ou confortáveis. O transporte por aplicativo — principalmente o feito por motos, que completou dois anos de funcionamento no Rio — tem cumprido um papel que os transportes coletivos não conseguem. As empresas que prestam esse serviço não divulgam números de viagens.
— As pessoas estão se protegendo da má qualidade e da insegurança migrando também para os veículos particulares. Isso impacta diretamente no trânsito, que fica mais congestionado, porque as ruas e as vias expressas não estão preparadas para o aumento de fluxo — explica Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes.
Em 2015, trens, metrô, barcas, vans intermunicipais e ônibus contabilizavam mais de 2,4 bilhões de passageiros. O número caiu para 1,39 bilhão em 2024, apesar do crescimento expressivo de usuários de vans intermunicipais (24,42%). Quintella explica que, além do crescimento do home office com a pandemia da Covid-19, a perda de mais de um bilhão de passageiros está ligada a outros fatores:
— A qualidade dos transportes é ruim. A capilaridade é baixa, não chega a muitos lugares, falta regularidade nos horários, climatização dos veículos e acessibilidade, a estrutura é precária, e tem a própria segurança. Hoje as pessoas têm medo de andar de transporte público, principalmente nas zonas Norte e Oeste, ou no deslocamento intermunicipal.
O PM André Luís dos Santos, de 44 anos, mora na Zona Oeste e trabalha na Zona Sul. Apesar de ter a opção de pegar o transporte público, ele prefere o carro:
— Tenho que sair mais cedo de casa por causa do trânsito, mas é mais cômodo. Se não for de carro, tenho que pegar um ônibus até o trem, o trem e o metrô. É tanta baldeação, que acabo ficando mais cansado. O carro também acho mais seguro.
O que dizem os gestores
Uma das soluções apontadas por autoridades e especialistas seria priorizar o transporte sobre trilhos, de forma integrada com outros modais. Atualmente, o estado do Rio tem uma malha ferroviária de aproximadamente 220 quilômetros, 13,1 quilômetros de VLT e 54,4 quilômetros de metrô. Joubert Fortes Flores Filho, presidente do Conselho da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos), diz que os diferentes meios devem ser complementares e não concorrentes.
— O transporte sobre trilhos é estruturador de todo o sistema, que fica nos corredores onde precisa transportar mais de 40 mil pessoas e conectar com outros modais. O Rio tem quase 300km de malha ferroviária, e mais de cem linhas de ônibus paralelas, em vez de alimentadoras. Obviamente, se tiver uma linha sobrecarregada, os ônibus ajudam a distribuir, mas muitos circulam vazios. Qual é a lógica? — questiona.
Secretário estadual de Transportes, Washington Reis também defende os transportes de alta capacidade:
— As montanhas do Rio dão condições de fazer obra do metrô furando a rocha, colocando centenas de milhares de pessoas no subterrâneo. Assim, você tira carros das ruas. Para melhorar, é preciso ter linhas de ônibus e vans para alimentar o transporte de massa.
Gerente de mobilidade da Semove, Eunice Horácio afirma que o congestionamento acaba impactando passageiros de todos os modais e é uma questão a ser combatida. Ele critica, por exemplo, os que pregam a substituição dos ônibus a diesel por elétricos sem resolver o problema dos engarrafamentos:
— Vamos ter um bando de veículos elétricos parados e um congestionamento verde. Tinham é que investir em mais BRS (corredor preferencial para ônibus). O projeto começou na Zona Sul, chegou ao Centro, a algumas ruas da Zona Norte, e parou.
Já o presidente do MetrôRio, Guilherme Ramalho, defende um olhar para o sistema de transportes como um todo:
— O sistema de transporte tem que ser organizado com os modais estruturantes sendo alimentados pelos complementares, de modo que as pessoas tenham mais opções a um custo menor e a uma qualidade melhor. A gente tem que incentivar que as pessoas se locomovam pela cidade. E isso é muito possível de ser feito por meio de políticas públicas adequadas. Tem espaço para todos os modais.
Procurada durante duas semanas, a secretária municipal de Transportes do Rio, Maína Celidonio, não respondeu às perguntas encaminhadas pelo GLOBO. Por e-mail, sua assessoria disse que foi lançada uma campanha para elaborar um plano estratégico de 2025 a 2028.
Fonte: https://oglobo.globo.com, 27/01/2025
Foto: COPPE/UFRJ