Taquarenses restauram locomotiva centenária

Rádio Taquara – Quando a velha Maria Fumaça voltar a cuspir vapor e assoviar em meio à mata do interior de Gramado, não será só ferro rangendo em nome de uma nostalgia repaginada. Mais de seis décadas após os trilhos e dormentes desaparecerem da paisagem dos campos serranos, uma locomotiva do século 19 está sendo trazida de volta à vida por gente que fundiu essa memória à própria história. À frente desse trabalho está uma equipe quase toda formada por taquarenses, que assumiu a missão de restaurar a máquina que será a grande atração de um futuro parque temático dedicado aos trens. Mais do que restauro, é quase uma reencarnação.

Entre o velho continente e a América Latina, há muita história e carvão queimado pelo caminho. A locomotiva foi fabricada em 1891 na Escócia pela Sharp, Stewart and Company. Com configuração “ten-wheeler” (dez rodas), trabalhou bastante até a aposentadoria. Ao que consta, no início do século 20, operou inicialmente no transporte de passageiros pela Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, participando do desenvolvimento do interior paulista e sul mineiro numa época em que a produção de café era o principal motor econômico do país. Depois de ser descomissionada, foi adaptada para puxar vagões de cana-de-açúcar na Fazenda Monte Alegre, em São Paulo, dos anos 1940 em diante, período em que ferrovias industriais exaltavam a eficiência da produção canavieira e simbolizavam o pioneirismo tecnológico.

Nos anos 1970, já cansada, sucateada e anacrônica, a velha locomotiva de quase 40 toneladas foi comprada pelo proprietário do Pampas Safári, parque temático de Gravataí, e passou a decorar o local. Ali, virou cenário de fotografias de muitas famílias do Vale do Paranhana por décadas. Agora, aos 134 anos, está prestes a ter um novo ciclo pelas mãos de Antônio Carlos Teixeira de Souza Júnior, Cleber Paz Machado e Edson Grun, trio taquarense que une saber prático, memória afetiva e um compromisso quase artesanal com a história ferroviária.

Iniciado em 2023, o trabalho de restauro acontece no terreno do futuro Parque Maria Fumaça de Gramado, no bairro Várzea Grande, próximo ao antigo ponto de embarque ferroviário da cidade. O projeto, encabeçado por um grupo de empresários, ocupará uma área de 40 mil metros quadrados atrás da Sociedade Ipiranga, às margens da RS-115. Atualmente em fase de testes, a previsão é que a atração seja inaugurada no próximo ano.

Raízes sobre trilhos

Gramado foi um distrito de Taquara até 1954, quando se emancipou. E foi pela cidade-mãe que os trilhos chegaram à Região das Hortênsias. O ramal entre Taquara e Canela, inaugurado em 1924, impulsionou o turismo serrano. Famílias de Porto Alegre e do Vale do Sinos buscavam refúgio nas montanhas nos meses de verão. Na Várzea Grande, hoje bairro de Gramado, funcionava a estação local e o chamado “rabicho ferroviário“, trecho que conectava a linha principal a pontos de carga e descarga.

Foi nos arredores da antiga estação da Várzea que ocorreu a “gênese” do que se tornaria um projeto de restauro histórico: a busca por vestígios do passado ferroviário entre trilhos encobertos pelo mato. Como lembra Cleber, o trecho estava completamente tomado pela vegetação, quase apagado do mapa e da memória.

“Eu e o Júnior fazíamos trilhas de fim de semana. Em 2009 resolvemos seguir os trilhos antigos, de Porto Alegre até Canela. Em 2012 chegamos aqui em cima. E era só mato”, conta. O caminho precisou ser aberto a facão. “Viemos ladeando o barranco sem saber exatamente onde estava a linha. Quando achamos o fosso do girador que girava os carros ferroviários, quase caímos dentro dele de tanto mato que tinha”, lembra.

Antônio Carlos, conhecido como “Júnior”, carrega a ferrovia na genealogia. Filho, neto e bisneto de ferroviários, cresceu ouvindo histórias de maquinistas e brincando nos vagões abandonados de Taquara. Hoje, é dele a coleção de miniaturas de trens e parte da memória que agora ganha corpo no museu ferroviário previsto para o Parque Maria Fumaça.

“Desde criança eu mexia com miniatura. Meu avô fazia réplicas das locomotivas em que trabalhou. Algumas estão no museu da Várzea, outras em Gramado. Quando surgiu a ideia de comprar as locomotivas do Pampa Safári, foi natural montar uma equipe. E ela é toda de Taquara”.

Cleber, ourives desde os 17 anos, nunca imaginou que restauraria locomotivas. Mas foi no casco enferrujado da Maria Fumaça que descobriu outra forma de lapidar o tempo.

“Até dois anos atrás, eu ainda trabalhava com joias. De repente, estou aqui, restaurando uma locomotiva. E olho pra ela hoje… tudo o que brilha, eu que poli. Fiz peças novas em bronze, em latão. Quando encontramos essa máquina no Pampas Safári, tinha uma árvore nascendo dentro dela. Estava coberta de ferrugem e camadas de tinta velha. Tínhamos que raspar tudo, salvar o que dava, refazer o que não dava mais. Ver no que ela está se transformando é emocionante”.

E tudo é fiel ao passado, segundo Cleber. “O equipamento dela é praticamente o original. A gente conseguiu recuperar quase tudo. A maior parte foi mantida na originalidade, com peças retificadas, consertadas ou, em alguns casos, refeitas”.

E há outro trem na fila.

“A gente tem outra locomotiva, uma Baldwin de 1921, que ainda está no galpão. A caldeira dela ainda tem alguns vazamentos, e estamos resolvendo isso pra depois começar a parte estética, como fizemos com esta aqui. Por enquanto, ela é só caldeira e chassi, nem cabine tem ainda. Parece um charuto”, explica Cleber.

Desde o berço

O envolvimento de Júnior com trens vai além do afetivo. Há algo de biográfico nessa relação.

Ele recorda que viajou de Maria Fumaça para Uruguaiana e Santa Maria, visitando tios, embarcado no trem noturno, como era chamado. Sua chegada a Taquara, ainda bebê, também foi pelos trilhos. Morava em Porto Alegre, mas passava longas temporadas na casa do avô. Lá, entre conversas com ferroviários aposentados e brincadeiras nos vagões parados atrás de casa, foi alimentando a paixão.

“Pulava o muro e ia brincar dentro das locomotivas. Tenho fotos em cima das máquinas, nos anos 60”, conta. “Quando criança, andei bastante”, conta.

Desde os dois anos, ganhava miniaturas de trem. Guardou todas. Mais tarde, começou a colecionar de forma sistemática. “Em 2000, comecei a mexer mais com isso”.

Júnior também atuou no restauro da histórica locomotiva da fábrica belga La Meuse, fabricada em 1909, exposta na Estação Campos de Canella.

Restaurar, regular, reviver

A equipe lidera o restauro unindo conhecimento técnico, experiência prática e vínculos afetivos com a história ferroviária. Cleber é ourives. Júnior, músico. E Edson, o elo técnico, mecânico de formação, já havia trabalhado com eles em um projeto anterior em Bento Gonçalves, restaurando uma locomotiva usada em minas. Foi ali que testaram os primeiros métodos.

“A pressão de vapor dessa locomotiva chega a 150 libras. A vedação é feita com gacheta, uma corda embebida em graxa e grafite. Se não estiver bem regulada, a máquina pode entrar em dessincronia nas braçagens, travar e até quebrar. Por isso, todo o sistema precisa ser ajustado com precisão, para que funcione com segurança”, explica Cleber.

A meta é que, até meados de 2026, a locomotiva percorra 450 metros de trilhos em um passeio inaugural. Inicialmente, irá de um ponto a outro e retornará de ré. Em fase futura, o plano é instalar giradores nas extremidades da linha para que a locomotiva possa sempre seguir de frente.

“A emoção é como ver um brinquedo de infância ganhar vida. Eu empurrava trenzinho com a mão. Hoje, faço um andar de verdade”, diz Júnior.

“Cada locomotiva é uma emoção”

A equipe conta também com o suporte técnico de Mário César Castro dos Reis, maquinista aposentado e restaurador experiente de Tubarão (SC).

Aos 75 anos, Mário carrega no corpo a experiência de uma vida sobre trilhos. Filho, neto e pai de ferroviários, começou na Rede Ferroviária Federal S.A (RFFSA) em 1966, e nunca mais se afastou do vapor. Hoje, presta consultoria no restauro da locomotiva centenária.

“Passei por tudo na minha vida. Locomotiva virada, acidente… Tudo quanto é problema, eu enfrentei. Então o cara aprendeu, na vida do dia a dia, tudo o que tinha que aprender. E ainda continuo aprendendo”, diz.

Após se aposentar, Mário colaborou na montagem do museu ferroviário em Tubarão, que segue em funcionamento. Também prestou serviço em Bento Gonçalves e agora atua no projeto de Gramado. “Quando há necessidade, me chamam e eu venho. Enquanto tem problema, a gente vai resolvendo”.

Mário e Edson fazem ajustes na cabine junto ao manômetro (Foto: Guilherme Kaiser/Rádio Taquara)

 

Para explicar o funcionamento da locomotiva, ele simplifica: “É como uma panela de pressão. Tem que ter água dentro, ferve, aí vira vapor, e o vapor gera energia”.

Segundo Mário, cada locomotiva é uma nova emoção. “Cada vez que eu pego uma, é diferente da outra. Nem dá pra contar quantas eu já fiz. Sempre vai aparecendo problema. Aí como o cara tem mais experiência, o pessoal consulta, pergunta, pede ajuda. E a emoção só aumenta”.

Ele também carrega lembranças da infância no trem, especialmente com o pai. “Eu viajava quase toda semana. Ele me levava porque tinha três crianças em casa, e eu era o mais velho, o mais bagunceiro. Então ele levava um e deixava dois. Dormia dentro do vagão. A vida toda foi dentro do trem”.

O declínio da malha ferroviária

A desativação em massa das ferrovias brasileiras começou a ganhar força a partir dos anos 1960, especialmente durante o regime militar. O foco no transporte rodoviário, incentivado pela indústria automobilística e pela construção de rodovias, deixou os trens em segundo plano. Linhas importantes foram extintas, o transporte de passageiros praticamente desapareceu e a malha ferroviária ficou restrita a trechos de escoamento de cargas.

“Olhando pros países desenvolvidos, a maioria do transporte é com trem. Só o Brasil ficou pra trás. Começou a desativar, relaxar, deixar de lado. Aqui, agora surgiu essa ideia do turismo, e aí tá revivendo um pouco. Mas falta política. Falta a população também querer. O transporte ferroviário é lógico, é útil. Facilita, tira o movimento das estradas. Mas o país, politicamente, é mais voltado pra ganância. E como a estrada dá mais lucro, a ferrovia ficou abandonada”, conclui Mário.

A equipe e o projeto (Foto: André Amaral/Rádio Taquara)

O “rabicho”

O chamado rabicho ferroviário de Gramado foi uma solução singular adotada no início do século 20 para vencer o desnível entre o Vale do Paranhana e o planalto da Serra. Como a inclinação do terreno era muito acentuada, os trens que saíam da estação de Várzea Grande precisavam subir de ré por um trecho com cerca de três quilômetros, até alcançar uma bifurcação onde podiam então seguir em frente rumo ao centro de Gramado.

Essa manobra, rara e considerada única na América do Sul, compensava a impossibilidade técnica e financeira da época de se abrir túneis ou viadutos. O rabicho permaneceu em operação entre 1919 e os anos 1960, e ainda hoje parte de sua estrutura pode ser observada nas imediações da antiga estação da Várzea, onde iniciativas locais buscam preservar a memória ferroviária da cidade.

Fonte: Radiotaquara, 17/05/2025

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