Uma iniciativa que quer facilitar as viagens de trem pela Europa e tornar o continente mais ‘verde’
Foto: Emile Ducke/The New York Times
O homem magricela se curvou para examinar os trilhos de trem enferrujados que atravessavam a praça vazia de uma cidadezinha esquecida, balançando a cabeça ao ver os brotos de erva daninha. “Que decepção”, foi o veredito, talvez influenciado pela estação de tijolinhos desativada, acumulando teias de aranha em Seifhennersdorf, na Alemanha, perto da fronteira com a República Tcheca.
Por profissão, Jon Worth é professor universitário de comunicação política; por paixão, autoproclamou-se inspetor das vias férreas da Europa. E se encarregou de esclarecer um dilema: por que não é mais fácil atravessar as fronteiras europeias de trem?
Ninguém lhe pediu que assumisse a tarefa, mas sua justificativa é clara: para o continente honrar a ambição de alcançar a neutralidade de emissões, precisa tirar as pessoas dos aviões e carros.
Teoricamente, o sistema ferroviário europeu é superior ao de muitas partes do mundo, inclusive ao dos EUA; no entanto, sua rede pode quase ser uma alegoria para a própria União Europeia. Para quem está de fora, parece tão funcional que chega a ser chato; basta ir um pouco mais a fundo, porém, para descobrir um emaranhado de burocracia, troca-troca de acusações e o eterno chute na lata da procrastinação dos problemas.
Para o bloco que quer ser o mais “verde” do planeta, suas rotas ferroviárias internacionais deixam muito a desejar: as pontes que antes cruzavam fronteiras se veem em ruínas desde a Segunda Guerra Mundial; a linha multimilionária entre Paris e Barcelona, que oferece paisagens espetaculares, poderia levar milhares de passageiros por hora, mas em vez disso a rota permanece inativa durante a maior parte do dia. Percorrer uma rota comercial de grande movimento, tipo Paris-Londres, pode custar centenas de dólares a mais do que por avião. Quer ir de trem de Tallinn, na Estônia, a Riga, na Letônia? Boa sorte. As companhias férreas nacionais envolvidas no percurso se recusam a coordenar os horários.
Para piorar, os sites de viagem para reservas internacionais — por exemplo, o equivalente ao Kayak ou Skyscanner, que fazem reservas em voos — por alguma razão não existem ou são difíceis de encontrar. Para entender por que — e chamar atenção para o problema —, Worth começou uma campanha de um homem só em meados deste ano, que ele chamou de Cross Border Rail Project.
Mediante financiamento coletivo, comprou um drone, uma câmera e um dispositivo para medir a qualidade do ar dos trens, e vem atravessando todas as fronteiras da UE para determinar onde o sistema internacional funciona, onde não funciona e o que pode ser feito para remediar a situação, sempre registrando suas conclusões. Em cada parada escreve um postal resumindo suas descobertas para o comissariado da agência ferroviária do bloco e oferecendo recomendações.
— Ainda não recebi resposta. Muita gente reage ao que estou fazendo, e o que mais ouço é: “Você é louco assim mesmo? ” Outros acham interessante porque também sabem que temos de pôr mais gente nos trens — comentou ele enquanto seguíamos em um compartimento envidraçado na linha Praga-Berlim.
Worth chamou minha atenção pela primeira vez enquanto eu tentava planejar uma viagem que parecia simples, mas que acabou quase me fazendo arrancar os cabelos de frustração. Sendo norte-americana, já cheguei a zombar das reclamações de alguns europeus contra suas redes ferroviárias, pois, comparadas com as nossas, pareciam invejáveis. Então tentei comprar passagens para uma viagem de Paris ao norte da Espanha, e acabei tendo de descer até Madri para poder dar meia-volta e chegar às cercanias da fronteira gaulesa.
Foi quando o descobri no Twitter, porque ele sempre atende aos apelos desesperados dos viajantes. Segundo ele, uma das dúvidas mais comuns é como chegar a Portugal, já que seus horários parecem ser quase impossíveis para quem é de fora.
— Lisboa deveria ser uma das metrópoles europeias zeradas em CO2 até 2030, certo? Mas como é que se chega até lá de trem? É quase impossível. Ninguém precisaria ser especialista para comprar uma passagem — diz.
Não faz muito tempo, eu o acompanhei na fase final de sua travessia das fronteiras entre a Alemanha, a Polônia e a República Tcheca; a bordo, conhecemos outro passageiro, Sebastian Kaiser, que reconheceu Worth do Twitter e também estava tentando se movimentar pelo continente só de trem.
— Hoje a coisa está mais difícil… Não só por causa da logística, mas por causa das hordas de jovens turistas alcoolizados que seguem para a capital tcheca. Esta rota é sempre complicada, e geralmente é a mais fedida — desabafou ele.
No mundo dos nerds ferroviários europeus, pequeno, mas apaixonado, Worth ocupa a posição de semicelebridade. (Outro aficionado popular por ajudar os viajantes é o inglês Mark Smith, por meio do site Seat61.com.) Durante todo o percurso, recebeu mensagens de estranhos que conheciam o projeto — e, às vezes, até a companhia física — e queriam compartilhar ideias e sugestões de como melhorar as malhas ferroviárias ou saber quais as rotas com paisagens mais belas, dos Alpes ao Mar Báltico.
Às vezes, ainda dá para sentir os efeitos duradouros da Segunda Guerra Mundial sobre a viagem de trem: como no trecho da fronteira polonesa rumo a Berlim, onde uma viagem foi cancelada depois da descoberta de uma bomba não detonada em uma das estações da capital alemã. Esses explosivos, aliás, continuam sendo um dos principais motivos para a interrupção das viagens no país.
Mas nossa viagem também expôs outro tipo de problema: os roubos. Tivemos de mudar de rota na fronteira Alemanha-Polônia porque os ladrões tinham surrupiado os fios de cobre dos cabos de sinalização dos trens. Segundo a Deutsche Bahn, companhia ferroviária nacional alemã, serão precisos três meses para concluir o conserto.
Às vezes, me peguei pensando se Worth não era exigente demais; afinal, ainda é possível rodar praticamente toda a Europa de trem. Mas ele me disse que comparar o presente com o passado é a melhor justificativa para sua missão:
— Nos anos 30, você levava duas horas e 45 minutos para chegar a Breslau (atualmente, a cidade polonesa de Wroclaw) saindo de Berlim; hoje levo mais de quatro. Nos anos 90, a linha Bucareste-Budapeste levava 12 horas; hoje, no mínimo, são 15. Esse aumento é o resultado de décadas de negligência e não priorização das linhas internacionais.
Na fronteira Alemanha-República Tcheca, pegamos bicicletas dobráveis para que Worth pudesse fotografar duas linhas menores que ligam as aldeias do interior tcheco aos vilarejos alemães.
— Conexões como essas são fundamentais para estimular o público a voltar a andar de trem. Viagem internacional não liga só Bruxelas a Luxemburgo. Em lugares como este aqui, atravessar a fronteira é coisa do dia a dia — explicou.
A última etapa da nossa jornada revelou um exemplo óbvio da modernização fronteiriça equivocada: na ponte que liga a cidadezinha polonesa de Zgorzelec à versão irmã na Alemanha, Görlitz, a fiação instalada para eletrificação da linha parou abruptamente assim que entramos em território alemão.
A Polônia e a Alemanha assinaram um acordo em 2003 para eletrificar as linhas transnacionais, mas, 20 anos depois, Berlim ainda não cumpriu sua parte. A fiação elétrica do lado polonês nunca foi usada; de fato, os postes elétricos foram instalados apenas como um gesto gigantesco de provocação. Até hoje, só os trens movidos a diesel conseguem passar por ali.
— É como se dissessem aos alemães: “E aí, caras, fizemos nossa parte; vocês, não. Quando é que vão se animar? ” — concluiu Worth.
Fonte: O Globo, 31/10/2022