Na manhã do dia 22 de fevereiro de 2012 os sons na estação ferroviária de Once não eram os da voz de Gardel ou do bandonéon de Piazzolla, mas sim os de uma sinistra melodia combinando ruído de aço se retorcendo, gritos de pessoas e dor. Muita dor. Um trem de subúrbio operado pela concessionária Trenes de Buenos Aires (TBA) adentrou a estação terminal a 30 km/h e, por falha do sistema de freio, não parou, chocando-se violentamente com os chamados para-choques de fim de via. O resultado foi a morte de 51 pessoas e ferimentos em outras 700.
Estava ali patente não só o resultado de um lento declínio do sistema ferroviário argentino, de carga e de passageiro, como também os sinais de fadiga do seu processo de privatização.
As ferrovias argentinas, como em quase todo o mundo, começaram a ser implantadas no final do século XIX, por meio de empresas de capital britânico ou francês. Com o desenvolvimento do rodoviarismo, na primeira metade do século XX, essas ferrovias tornaram-se deficitárias e foram absorvidas pelos governos. Sob Perón, as ferrovias estatais ganharam reluzentes nomes do generalato argentino: Belgrano, Mitre, Roca, Sarmiento, San Martín e Urquiza. Tempos depois foram unificadas sob a denominação de Ferrocarriles Argentinos (FA), e, em sequência, os trechos de trens de subúrbio foram separados da FA, de maneira análoga ao que ocorreu no Brasil, com a criação da RFFSA (1957) e da Cia. Brasileira de Trens Urbanos (1984).
Crise e déficit fiscal levaram o então presidente Carlos Menem a implementar, nos anos 90, um amplo programa de desestatização, inspirado no New Public Management, de Margaret Thatcher, também replicado no Brasil, com Bresser-Pereira à frente do Ministério de Administração e Reforma do Estado (Mare), no governo FHC.
Nesse programa argentino foi feita, dentre outras coisas, a transferência para a iniciativa privada de 7 linhas de trens de subúrbio e do mais antigo metrô da América Latina, com assunção da exploração por 4 empresas: Ferrovías, Metrovias, Metropolitano e TBA. A modelagem do negócio previa a concessão de subsídios e um prazo concessório de 10 anos (20 anos para o metrô e linha Urquiza), prorrogáveis por mais 10 anos. Os pleitos licitatórios ocorreram ente maio de 1994 e abril de 1995 e influenciaram fortemente os processos de concessão dos trens de subúrbio e do metrô do Rio de Janeiro, conduzidos pelo governo fluminense em 1998.
O início da exploração privada dos trens de subúrbio e metrô argentinos foi promissor, com a introdução de princípios gerenciais inovadores e corpo de funcionários rejuvenescido e motivado. O número de passageiros transportados dobrou em curto espaço de tempo. Os problemas, porém, começaram quando, de um lado, verificou-se que o aumento da demanda exigiria um novo programa de investimentos, diferente do planejado à época da licitação. Os concessionários, por seu turno, alegavam que rentabilidade do negócio era baixa, uma vez que o grau de deterioração e obsolescência da malha não lhes permitia a realização de gastos de capital expressivos.
A isso se somou a Lei de Emergência Pública e Reforma do Regime Cambial (2002), que congelou as tarifas de serviços públicos. Completando o imbróglio, o Fundo Fiduciário do Sistema de Infraestrutura de Transporte, mecanismo de subsídio ao transporte público e ancorado num sobrepreço sobre os combustíveis, tal como a Cide brasileira, se viu cada vez mais obrigado a recorrer ao Tesouro, fazendo minguar os aportes finais ao sistema de trens de subúrbio, dadas as restrições orçamentárias do país.
Esses fatos, segundo o Centro de Implementação de Políticas Públicas para a Equidade e o Crescimento (CIPPEC) da Argentina, redundaram em: 1) elevado subsídio operacional requerido pelos concessionários dos trens de subúrbio, da ordem de 70% das receitas operacionais; 2) aporte de subsídios num entorno de baixa qualidade regulatória; e 3) deterioração crescente da malha, com os investimentos correspondendo, em média, a apenas 10% das necessidades reais.
O agravamento da situação concessória acarretou, entre 2005 e 2007, a reestatização das linhas concedidas à empresa Metropolitano (San Martín, Belgrano Sul e Roca). Em 2012, após o acidente de Once, o mesmo se deu com as linhas Mitre e Sarmiento da TBA. A exploração ferroviária dessas 5 linhas ficou por conta de dois novos entes estatais de nome pomposo: Unidades de Gestão Operativa Ferroviária de Emergência, que por sua vez subcontrataram para a operação um consórcio formado pelas duas concessionárias restantes: Ferrovías e Metrovias.
Decorridas quase duas décadas dessa concessão, o número de passageiros transportados no metrô e nos trens de subúrbio equivale ao do início do período pós-concessório, ambos com tendência de queda.
Os ensinamentos desse processo para o Brasil não são poucos, sobretudo diante da máxima “eu sou você amanhã”, que, com base numa exitosa propaganda de bebida alcoólica, preconiza que um evento no país vizinho logo em seguida ocorrerá entre nós.
As principais conclusões disso levam, inter alia, à necessidade de se ter, seja na Argentina, seja no Brasil, uma política de subsídios cuidadosamente dosada, ancorada em sólidos mecanismos de financiamento e num ambiente regulatório estável e não politizado.
No caso das ferrovias urbanas brasileiras, essas devem ser preferivelmente exploradas num conceito de “bacia de transporte”, envolvendo a concomitante administração das linhas troncais (ferroviárias) e arteriais (rodoviárias). A exploração de espaços aéreos de estações, estacionamentos subterrâneos, certificados de potencial de aumento construtivo (Cepacs) – lançados após um rebaixamento do gabarito na área lindeira à de expansões da malha – e redução da sobretarifação da energia elétrica nos horários de ponta são alguns dos elementos que poderão dar mais solidez a processos concessórios existentes ou futuros.
José Eduardo Castello Branco é engenheiro, consultor e doutor em engenharia de transportes. Foi diretor-presidente da Valec.
Fonte: Valor Econômico, 14/06/2013