Flagrada viajando de pé num ônibus lotado, Lucélia Santos, ícone da TV brasileira, foi a protagonista da semana
No seu monumental “Ensaio sobre a cegueira”, José Saramago descreve uma epidemia que se alastra impiedosamente entre os humanos, tornando-os, todos, incapazes de enxergar. A praga atira o mundo num caos de seres dominados pelos instintos mais primitivos, à exceção de uma mulher que misteriosamente mantém a visão e observa a iniquidade à sua volta. Libelo sobre o que há de mais selvagem em nossa espécie — dominação, ganância, egoísmo, impotência, abandono —, a obra de um dos maiores escritores de língua portuguesa serve de metáfora para inúmeras histórias reais, cotidianas. Entre elas, o trânsito de megalópoles como o Rio de Janeiro.
São cegos insensatos os que veem no automóvel a solitária alternativa de transporte do dia a dia. O venenoso combustível do individualismo entope ruas e pontes, avenidas e viadutos, polui o ar e transforma em fumaça a qualidade de vida, numa ciranda maldita. Experimente convidar o motorista, qualquer um, por trás dos vidros pretos da caminhonete gigante ali ao lado, para acelerar no caminho da conscientização, deixando, vez ou outra, seu brinquedo na garagem. Sem chance. Irremediavelmente viciado no exílio refrigerado de bancos de couro e computador de bordo da sua cidadela sobre rodas, ele estará nas ruas amanhã e para sempre. Milhares deles, todos cada vez mais cegos — e engarrafados.
Na vida real do escaldante canteiro de obras chamado Rio de Janeiro, a epidemia se alastra nos engarrafamentos que inviabilizam as viagens curtas, médias e longas. Nem a moldura majestosa de mar, floresta e montanha presta para amenizar a avalanche de estresse e atraso que sufoca os cariocas. Nas filas imóveis, fica ainda mais fácil encontrar os motoristas solitários em seus latifúndios movidos por direção hidráulica e câmbio automático.
Mas uma mulher mostrou que enxerga e ofereceu uma lição cidadã à cidade. Na desnecessidade irresistível do noticiário das celebridades, Lucélia Santos, ícone da TV brasileira, foi a protagonista da semana, ao ser flagrada viajando de pé num ônibus pagão — e lotado. Ela seguia seu caminho no 524 (Botafogo-Barra, via Humaitá) e aparece na imagem feita por celular — despejada quase instantaneamente numa rede social, claro — de camiseta branca, os cabelos despojadamente presos, rosto sem maquiagem. Estilo gente normal.
Choveram comentários debochados, pela cena de um famoso entre os anônimos, algo quase bizarro no reino dos equívocos onde vivem cariocas e brasileiros. Fora da TV há quatro anos, Lucélia Santos estaria pobre, condição exclusiva dos que andam de ônibus. Afinal, vale tourear qualquer dívida para se livrar do suplício dos transportes públicos por aqui, e pôr mais um carro na rua.
De fato, o serviço prestado pelos ônibus cariocas, concessões públicas com cara e jeito de capitanias hereditárias, patina há décadas na incompetência de seus gestores, protegida pela endêmica cumplicidade dos governantes. O distinto público que se aperte, se vire, se dane — nos ônibus sim, em metrô, trens e barcas também. O tal jogo jogado.
Aqui, a ficção oferece a segunda metáfora. A atriz que viveu a inesquecível Escrava Isaura esculpiu o discurso da libertação. “O Brasil é o único país que conheço em que andar de ônibus é politicamente incorreto!!!!!!! Vai entender… Isso porque os ônibus aqui, e transportes coletivos de um modo geral, são precários e ordinários, o que mostra total desrespeito à população! Em qualquer país civilizado, educado e organizado, é o contrário. As pessoas dão prioridade a transportes coletivos para proteger o meio ambiente. Os governos deveriam investir em transportes decentes para a população, com conforto e dignidade (…). A imprensa deveria usar sua inteligência para divulgar campanhas para os transportes públicos coletivos de primeira grandeza. Terminando: o Brasil deveria ler mais, se instruir mais, desejar mais e sair da burrice de consumo idiota e descartável que lhe dá carros!”, escreveu ela, também via redes sociais. (E depois, posou para a foto acima, num outro ônibus, ratificando sua convicção.)
Ataque direto e impecável aos bobos da nossa elite, que acham chique o metrô de Nova York e os ônibus de Londres, mas aqui se escondem solitários em seus carros. Além de cegos, surdos — porque, se ouvissem os ensinamentos acima, apostariam no transporte coletivo, aumentando a pressão por um serviço digno, de qualidade.
E aí, seriam, afinal, cidadãos. Como Lucélia Santos.
Fonte: O Globo, 15/03/2014