RIO – Da janela do veículo leve sobre trilhos (VLT), um passeio pela história do Rio. Além de cumprirem sua função de transporte público, os bondes modernos levarão os passageiros às ruas pelas quais João do Rio se encantou, à Pequena África das heranças negras, a cenários retratados por Debret e a trajetos presentes nas crônicas de Machado de Assis. Uma viagem pelo tempo que começará em abril de 2016, da Rodoviária Novo Rio ao Aeroporto Santos Dumont, passando pela Avenida Rio Branco. Numa segunda fase, a partir de agosto do ano que vem, cruzará também da Central do Brasil à Praça Quinze. Já o trecho da Avenida Marechal Floriano, admite a prefeitura, não ficará pronto a tempo dos Jogos Olímpicos: a previsão é que só entre em operação em 2017.
As obras que abrirão caminho para o VLT já são executadas na maior parte dos 28 quilômetros de percursos, com 35% dos trilhos instalados. Os trechos mais adiantados estão ao longo da Via Binário e do futuro boulevard da Avenida Rodrigues Alves, onde, ao sair das imediações da rodoviária, o passageiro do bonde encontrará as primeiras construções históricas. Relíquias como a Igreja de Nossa Senhora da Saúde, uma das mais antigas do Rio, fundada por devotos de Nossa Senhora do Terço, por volta de 1750. Um pouco adiante, aparecerão na paisagem prédios como o da Fábrica de Espetáculos do Teatro Municipal (no antigo galpão da Paranapanema Metais), os velhos armazéns do Porto e construções tombadas como a da antiga Imprensa Nacional (hoje sede da Polícia Federal).
ACHADOS ARQUEOLÓGICOS NO CAMINHO
Já na chegada à Praça Mauá, trafegando bem perto da Pedra do Sal e do Morro da Conceição, passado, presente e futuro vão se encontrar. À beira da Baía de Guanabara, surgirá o futurista Museu do Amanhã, com projeto do espanhol Santiago Calatrava. Do outro lado dos trilhos, o passageiro verá o Museu de Arte do Rio (MAR), instalado em dois prédios heterogêneos e interligados — o eclético palacete Dom João VI e seu vizinho, de estilo modernista. Aparecerão pela frente também um pedacinho do Mosteiro de São Bento e gigantes como o Edifício A Noite, dos anos 1930, o primeiro arranha-céu da cidade, com seus 22 andares com traços art déco.
De mar a mar, do Porto ao Aterro, a passagem pela Avenida Rio Branco revelará remanescentes da antiga Avenida Central, nome anterior da via, um dos principais marcos da transformação promovida pelo prefeito Pereira Passos na cidade no início do século passado. Dessa época, estarão lá o imponente prédio da Caixa de Amortização do Banco Central, inaugurado em 1906, com suas colunas neoclássicas em mármore de Carrara, e também a sede do Iphan, com fachada de granito e portas de madeira de 4,3 metros de altura. A Candelária estará à vista, assim como, nas imediações da Cinelândia, clássicos do Rio como o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes e o Palácio Pedro Ernesto, além do Odeon. Um roteiro de tantas histórias que seria normal que as obras do VLT revelassem achados arqueológicos.
— Na Rio Branco, por exemplo, encontramos estruturas de calçamento pé de moleque. E, na Rua da Constituição, trilhos dos antigos bondes na mesma calha por onde passará o VLT — diz Jorge Arraes, secretário especial de Concessões e Parcerias Público-Privadas do Rio.
No itinerário que cruza a Rua da Constituição, aliás, mais resquícios do Rio do passado. Por esse caminho, o VLT virá da região da Central, atravessará a Avenida Presidente Vargas próximo ao Palácio Duque de Caxias e ao Campo de Santana, contornará as bordas da Saara e chegará à Praça Quinze. Terá em sua rota, por exemplo, a Praça Tiradentes, que João do Rio descreveu como um lugar de sentimentos religiosos que oscilavam “entre a depravação e a roleta”. É assim até hoje, com prostitutas nas proximidades do antigo Hotel Paris. Um largo onde, dependendo do ângulo, é possível se imaginar séculos atrás, diante de construções como o Solar do Visconde do Rio Seco, que já existia antes de dom João chegar ao Brasil, em 1808.
Mais adiante, as boas-vindas à Rua Sete de Setembro serão diante do imóvel que, no início do século XX, foi endereço da antiga Camisaria e Perfumaria Gaspar, com sua fachada datada de 1913. Dali em diante, o conjunto arquitetônico continuará remetendo ao Rio Antigo, como em frente à Casa Cavé, onde em 1929 foi inaugurada a Chapelaria A Radiante, com piso de ladrilhos hidráulicos portugueses e cristais e espelhos belgas.
Depois de atravessar a Rio Branco, o VLT chegará à Igreja Nossa Senhora do Carmo, transformada em Capela Real por dom João em 1808 e palco de celebrações como a coroação dos imperadores dom Pedro I e dom Pedro II, além do batizado da princesa Isabel. E na Praça Quinze, pintada por Debret, será possível avistar o Paço Imperial, erguido em 1743, e o chafariz de Mestre Valentim, inaugurado em 1789 a pedido do vice-rei Luís de Vasconcelos.
Mas talvez nenhum outro trajeto revele um Rio que ficou tanto tempo esquecido quanto o que cruzará o Santo Cristo e a Gamboa, por trás da Cidade do Samba, até chegar à Saúde, pela Pequena África carioca. Por ali se revelarão, por exemplo, o Centro Cultural José Bonifácio e o casario do início do século passado da Rua Santo Cristo. Outra atração será o Cemitério dos Pretos Novos, sítio arqueológico descoberto em 1996, onde foram identificados milhares de fragmentos de restos mortais de africanos que não resistiam à viagem para o Brasil. Ali, estima-se que tenham sido enterrados de 20 mil a 30 mil pessoas na primeira metade do século XIX.
Fonte: O Globo, 26/07/2015
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