Estatal dos trens teima em não parar

RIO — RFFSA, uma sigla que, para os mais novos, dificilmente vai remeter a algo muito além de uma sopa de letrinhas. E não é para menos: criada em 1957, a Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima teve sua liquidação iniciada ainda no século passado, em dezembro de 1999, como parte de um programa de privatização do governo federal. Em janeiro de 2007, a estatal — que num passado distante já foi a responsável por cerca de 38 mil quilômetros de trilhos — foi oficialmente extinta. Mas o fim está longe de ser definitivo: com pendências que se espalham pelo Judiciário e por pelo menos seis órgãos da União, a empresa sequer teve seu inventário concluído. No mês passado, o Ministério dos Transportes publicou uma portaria estendendo os trabalhos por ao menos mais um ano.

Mesmo depois de quase dez anos de sua extinção, a RFFSA ainda tem à disposição 250 funcionários que trabalham diretamente nos levantamentos que envolvem a estatal. Oficialmente, eles pertencem a um quadro especial da Valec, empresa que foi mantida pela União para ficar à frente de obras no setor ferroviário. A pressão para que o inventário seja concluído vem aumentando: também no mês passado, o Ministério dos Transportes criou um grupo especial para, até o fim de março, estabelecer um cronograma definitivo para o fim dos trabalhos. Em nota, o chefe da inventariança, Manoel Geraldo Costa, justifica o longo prazo por números catalogados da Rede que classifica como “monumentais”: 105,8 mil imóveis; 37 mil itens em estoque (almoxarifados); 393 locomotivas; 4.353 vagões e 38.300 equipamentos.

Para além do próprio inventário, também não faltam outros dados que impressionam sobre o gigante estatal. De acordo com a Advocacia Geral da União (AGU), há atualmente 47.093 processos envolvendo a RFFSA. Dentro desse universo, existem, por exemplo, 9.285 ações de desapropriação de imóveis. O total de valores envolvidos é incalculável, mas, só para se ter uma ideia, apenas um processo, da Cetenco Engenharia, pode resultar num prejuízo de cerca de R$ 300 milhões para a União. A empresa já conseguiu sentença favorável em primeira instância na cobrança de uma dívida relativa à construção da Ferrovia do Aço, que ocorreu entre as décadas de 1970 e 1980.

O valor do patrimônio imobiliário da extinta estatal tem como uma das referências os bens que já foram catalogados no inventário e disponibilizados para que a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), órgão ligado ao Ministério do Planejamento, providencie a venda. A lista tem 1.062 imóveis disponíveis. A estimativa de arrecadação é de R$ 1,193 bilhão, mas apenas 201 vendas foram efetivamente concluídas, com R$ 195 milhões obtidos. O destino do dinheiro é um fundo contingente, criado para cobrir passivos trabalhistas e despesas com a própria regularização de imóveis.

Cada um desses imóveis pode representar uma novela à parte. No número 3.102 da Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio, por exemplo, a RFFSA tinha um terreno que chegou a ser colocado à venda pela SPU. A decisão, porém, foi cancelada em julho do ano passado. O terreno vem sendo utilizado como quadra pela escola de samba São Clemente. A SPU afirma que a ocupação é irregular, mas a disputa segue na Justiça.

Um outro ponto que ainda está indefinido são os bens com possível valor histórico. A inventariança da Rede já enviou ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) uma lista com milhares de itens para serem analisados. O órgão tem um setor que cuida da lista do patrimônio ferroviário. Mas ainda há muitas pendências de retorno, porque a maior parte é sem valor e existe uma disputa sobre de quem será a responsabilidade de zelar por esses bens. O caso está sendo acompanhado pela AGU.

Um dos passivos decorrentes da RFFSA que mais preocupam é o do Refer, fundo de pensão dos funcionários da estatal. De acordo com o último relatório divulgado pelos gestores, relativo ao ano de 2014, já havia na época uma dívida de R$ 2,7 bilhões da União tida como “líquida, certa e exata”, após análise da Controladoria Geral da União (CGU). O caso está com a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), que informou que “há previsão legal para que o Ministério da Fazenda venha a regularizar a obrigação, mediante a emissão de títulos”. Porém, a STN alega que a dívida também foi ajuizada pelo Refer (ação de execução), em Vara Federal do Rio de Janeiro. Com isso, o processo administrativo para pagamento está parado, esperando retorno da AGU.

Salários Defasados

Além de se preocuparem com a situação do fundo de pensão, os funcionários ainda na ativa da extinta RFFSA cobram atualização salarial. Segundo a Associação dos Engenheiros Ferroviários (Aenfer), a defasagem nos vencimentos seria de cerca de 350%. Para o presidente da entidade, Luiz Euler Carvalho de Mello, a privatização da estatal foi um prejuízo para o país:

— A Rede, quando entrou em liquidação, era o maior patrimônio do Brasil. Tinha finalidade econômica, social de extrema relevância. Atuava não só nos transportes de cargas mas também no de passageiros em todo o Brasil. Se não tivesse sido extinta, os produtos de exportação seriam mais competitivos porque a parcela correspondente aos custos de transporte no valor agregado seria reduzida. Hoje, temos uma carência de logística de transportes sobre trilhos muito grande.

Já o economista especialista em infraestrutura e sócio da Inter.B Consultoria, Claudio Frischtak, diz que o modelo da privatização das ferrovias foi bem realizado. E que as pendências atuais de uma estatal que já acabou há tanto tempo como a RFFSA servem de lição:

— É muito fácil criar uma nova estatal, mas é muito difícil se livrar de todos os passivos ligados a ela depois. São zumbis que não sabemos quando terminam, sequer se terminam.
Bilheteria vira residência

Não é preciso ir longe para esbarrar com pedaços abandonados da história da RFFSA. Na região central do Rio, na Rua Ceará, atrás de grades e de uma árvore centenária, há o que restou de uma antiga bilheteria da Estação Francisco Sá, que pertenceu à Estrada de Ferro Rio do Ouro, aberta ao tráfego de passageiros no fim do século XIX. Há anos, o imóvel encontra-se em mau estado de conservação, com a fachada bastante deteriorada. Moram ali famílias de ex-ferroviários como Celso de Souza, de 65 anos.

— Trabalhei por 30 anos na Rede e moro aqui já há 20 anos. Todo o mês descontam 10% do meu salário para eu ficar aqui.

Celso vive nos fundos do imóvel, com a mulher e um filho. Fez reformas no espaço, mas sofre com o calor no verão, já que a fiação muito antiga não resiste à colocação de um ar-condicionado. Ao lado de onde mora, estavam até o início desta década, plataformas e alguns vagões da Estação Francisco Sá. Mas, atualmente, há apenas resquícios do trilho no asfalto. O terreno vem sendo usado como canteiro para as obras da Linha 4 do Metrô.

— Tem dia que, quando venta, é uma poeira insuportável — reclama Celso.

Outro ícone da RFFSA no Centro do Rio que também sofre com anos de abandono é a Estação Barão de Mauá, na Leopoldina, da década de 1920. Nos fundos do prédio, no meio do mato alto, ainda há diversos vagões e locomotivas enferrujados, alguns deles inclusive com o logotipo da Rede. A concessionária SuperVia informou que atua “nas áreas de superfície da Estação Leopoldina, que restringem-se às plataformas, gare e salas localizadas no primeiro piso”, mas negou responsabilidade sobre as composições.

Se no terreno atrás da gare, há pouca perspectiva de revitalização, ao menos para o prédio principal há esperança. O secretário estadual de Transportes, Carlos Osorio, disse que aos poucos está transferindo as atividades de sua pasta para o imóvel, que foi cedido em boa parte ao governo do Rio, para evitar que o espaço fique abandonado.

Fonte: O Globo, 16/02/2016

Por Ruben Berta

 

 

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