Transporte público pode sofrer mudança estrutural em 2021

O transporte público no país pode passar por uma mudança estrutural ao longo de 2021. Além de sofrer com uma redução circunstancial no número de passageiros, imposta pelo distanciamento social, as empresas dizem que há um esgotamento no modelo de negócio baseado exclusivamente na receita com a passagem paga pelo usuário.

O executivo Luís Valença, presidente da CCR Mobilidade, empresa do grupo CCR, que tem várias concessões na área de transporte, diz que o momento é de reflexão.

“O sistema do transporte coletivo e urbano é dimensionado para atender horários de pico, mesmo que uma grande infraestrutura fique inutilizada durante o resto do dia. Isso tem um custo, e a pandemia afetou essa lógica”, afirma.

Em grandes cidades, a concentração de pessoas no horário de pico ainda é grande, o que leva a aglomerações e risco de contágio. No entanto, o fluxo de passageiros despencou a um nível inesperado.

No começo da pandemia, a NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos) projetou que 2020 terminaria com 80% do número de passageiros regulares e com toda a frota já circulando. Mas não foi o que ocorreu. O ano terminou com 61% do número usual de passageiros e 80% da frota em operação.

Com isso, o resultado financeiro também frustrou expectativas. O setor de transporte coletivo no país registrou um prejuízo de R$ 9,5 bilhões em 2020. O resultado ficou 8% abaixo das estimativas. Inicialmente, o setor esperava uma perda de R$ 8,8 bilhões.

Segundo o presidente da associação, Otávio Cunha, havia uma queda constante no volume de usuários desde 1994. A pandemia, no entanto, acelerou e aprofundou a retração e ligou um sinal vermelho.

“O setor já não vinha conseguindo equilibrar as contas apenas com a receita das tarifas pagas pelos usuários”, diz ele. “Com a pandemia e o distanciamento social, a demanda chegou a cair 80% em 2020, deixando claro que esse modelo não é mais sustentável.”

“O setor já não vinha conseguindo equilibrar as contas apenas com a receita das tarifas pagas pelos usuários”, diz ele. “Com a pandemia e o distanciamento social, a demanda chegou a cair 80% em 2020, deixando claro que esse modelo não é mais sustentável.”

Segundo o assessor especial do SPUrbanuss (Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo), Francisco Cristovam, ao menos 15% do total de 390 companhias que operam nas capitais e no Distrito Federal deixaram de operar em 2020 -alguns apenas suspenderam o serviço, mas mas muitas devolveram a concessão para o setor público.

“É uma conta que não fecha se não há passageiros em número suficiente para manter a frota operando, e o desequilíbrio entre oferta e demanda é grande agora”, afirma.

Quando a pandemia arrefeceu, no segundo semestre de 2020, houve quem acreditasse numa virada. Mas não foi o que ocorreu. Armando Guerra Júnior, presidente da Fetranspor (Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de

Janeiro), disse que o setor vinha com recuperação rápida até novembro, mas estabilizou. “Em janeiro, estamos largados à própria sorte”, afirma.

No estado do Rio, alguns segmentos de transporte público chegaram a operar com apenas 11% do contingente habitual. Só o setor de ônibus estima perdas de receitas de R$ 2,6 bilhões, com prejuízo de R$ 1,2 bilhão. Apenas na cidade do Rio, a perda de receita foi superior a R$ 1 bilhão, com prejuízo próximo a R$ 500 milhões.

Os ônibus estão trabalhando com 62% do contingente normal, e esse volume já configura uma recuperação. Chegaram, no momento crítico, a rodar com 39% de ocupação.

O VLT ficou numa situação ainda pior. Operou com 11% da capacidade e hoje trabalha com 35% de ocupação. O metrô trabalhou com 19% da capacidade. Agora, na média, opera com 45%.

Até o sistema aquaviário foi afetado. As barcas, antes da pandemia, transportavam cerca de 80 mil passageiros por dia. Hoje operam com 19 mil usuários por dia, de acordo com a Secretaria de Estado de Transportes.

Em Petrópolis, a situação é igualmente crítica. Estão transportando com apenas 25% de passageiros pagantes. Para garantir a primeira parcela do 13° salário aos rodoviários, as empresas tiveram que fazer empréstimos em instituições financeiras.

“O sistema de transporte pode entrar em colapso nos próximos dias em Petrópolis”, diz Isidro Rocha, presidente do Setranspetro (Sindicato das Empresas de Transporte Rodoviário de Petrópolis).

Para Armando Guerra Júnior, da Fetranspor, é preciso rever itens como tributação e benefícios. “Não dá mais para o passageiro no Rio pagar a conta integralmente”, diz. “Precisamos rever tributações no transporte individual, desoneração fiscal e as gratuidades.”

Em alguns locais, as empresas já recebem suporte do poder público. Em Curitiba, desde o início da pandemia, em março, o transporte de ônibus circula com um socorro da prefeitura para compensar as perdas com a queda no número de passageiros.

O programa foi prorrogado por duas vezes e já repassou às empresas cerca de R$ 180 milhões até o final de 2020, com estimativa de aporte de mais R$ 120 milhões nos próximos seis meses.

Em maio, o Tribunal de Contas do Paraná chegou a suspender o subsídio após um pedido movido por sindicatos, que alegavam que o município criou uma despesa sem indicar recursos para custeá-la.

O órgão acabou liberando o auxílio, mas mantém acompanhamento das despesas e chegou a verificar “in loco” a lotação dos veículos para comprovar o cumprimento das medidas de distanciamento social.

A situação não é diferente no extremo sul do país. Capital com uma das tarifas de ônibus mais caras do país (R$ 4,70), Porto Alegre tem visto o usuário de ônibus migrar para o transporte por aplicativos. Segundo o secretário de Mobilidade Urbana, Luiz Fernando Záchia, os consórcios que compõem o sistema de transporte na cidade tiveram um prejuízo de R$ 4,5 milhões ao mês no ano passado.

Entre as empresas que compõem o consórcio está a Carris, a única estatal. “A Carris está completamente deficitária. No ano passado, a prefeitura colocou R$ 66 milhões para mantê-la ativa”, diz Záchia, que é favorável à privatização da empresa criada em 1872 por um decreto do imperador Dom Pedro 2º.

Para o secretário, porém, a privatização no momento pode não atrair interessados.

“Primeiro, a passagem precisa ficar mais barata para atrair mais passageiros”, diz. A diminuição do valor pode ser atingida com revisão de gratuidade e fim dos cobradores, que receberiam capacitação para se tornarem motoristas.

Na tentativa de criar uma solução nacional para o problema, executivos tentam por de pé um novo marco regulatório para o setor. A mobilização ganhou força após o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ter vetado, em dezembro, um projeto de lei que previa o repasse de até R$ 4 bilhões a estados e municípios para custear o transporte público.

O objetivo da transferência era permitir que os entes federados renegociassem contratos com empresas prestadoras do serviço. Ao vetar o texto, Bolsonaro argumentou que houve “boa intenção do legislador”, mas disse que a nova despesa foi criada sem que houvesse estimativa de impacto orçamentário.

Parte do marco regulatório proposto pelo setor prevê adaptações nas concessões. O atual sistema, baseado em receita com tarifas pagas pelos usuários, seria substituído pelo ancorado em subsídios, bancados por estados e municípios, como acontece em São Paulo, Brasília e Curitiba.

A nova dinâmica ajustaria a adoção da gratuidade para alguns segmentos de passageiros. O tema é polêmico. São Paulo, por exemplo, suspendeu, em dezembro, a gratuidade para idosos entre 60 e 64 anos nas linhas municipais e intermunicipais. No início de janeiro, a Justiça determinou a volta do benefício.

Procurados para se pronunciar sobre os impactos da manutenção da gratuidade no transporte coletivo de São Paulo, os governos estadual e municipal não haviam se manifestado até a conclusão desta reportagem.

A situação do transporte público preocupa até a indústria de equipamentos. A Marcopolo, empresa com sede em Caxias do Sul (RS), referência na fabricação de carrocerias de ônibus, é uma delas.

Segundo o diretor de estratégia da empresa, João Paulo Ledur, o transporte público vive um momento crítico e demanda uma solução setorial, que pode ser resolvida por um marco legal.

“Entendemos que o problema do transporte público no Brasil é da sociedade, pois trata-se de um serviço essencial à população”, afirma. “Um marco regulatório pode trazer um fôlego.”

Segundo o presidente da Fabus (Associação Nacional dos Fabricantes de Ônibus), Ruben Bisi, o setor terminou o ano com retração de 25% na produção em relação a 2019. Em janeiro de 2020, a previsão era que a produção terminaria o ano com um crescimento entre 10% e 12%.

“O setor sofreu muito e teve problemas até com o fornecimento e a alta no preço de matérias-primas, como aço, cobre e alumínio”, diz Bisi. “Isso fez com que os clientes pensassem duas vezes antes de renovar a frota, e os problemas financeiros do setor podem comprometer 2021, se o governo não tiver linhas de crédito para os sistemas de mobilidade.”

Mas Bisi destaca que o cenário tende a ficar realmente mais promissor apenas após a vacinação. “Tudo ainda depende muito da vacina, é isso que vai fazer a população voltar a circular.”

Fonte: folha.uol.com.br, 16/01/2021

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