De um lado, passageiros empilhados em veículos precários, sem acesso a integrações e reféns de linhas sumidas. Do outro, empresas fechando as portas e investigações sobre desequilíbrios e fraudes em contratos. No centro da questão, modelos ultrapassados e insustentáveis de transporte público. Desde o ano passado, a pandemia escancarou e agravou as falhas da mobilidade urbana no Rio. Com a queda natural de demanda, as frotas ficaram ainda mais minguadas, já que concessionárias alegam não conseguir mais prestar o serviço contratado, o que impossibilitou, inclusive, o cumprimento da determinação de distanciamento social entre os usuários.
Entre os ônibus, são 173 linhas suspensas e apenas 160 cumprindo a quantidade mínima determinada de veículos nas ruas. O BRT, cujo sistema foi encampado pela prefeitura, hoje transporta menos passageiros que as vans — contando apenas as legalizadas. No trem, a concessionária SuperVia entrou com pedido de recuperação judicial, em meio a perdas de R$ 474 milhões durante a pandemia. No caso das Barcas, a CCR deseja, há anos, um acordo para deixar a concessão, e a demanda de passageiros caiu 73% após a chegado do coronavírus, o que fez o negócio “virar pó”, segundo seus administradores. Queda de passageiros também foi observada no metrô e no VLT, que patinam devido à falta de integração com outros meios de transporte.
No lado mais frágil da equação, sofrem os passageiros. Moradora de Campo Grande, Larissa Silva pega o ramal de Santa Cruz todos os dias. Entre os problemas, ela cita atrasos, suspensões e um assalto que já presenciou na estação de Madureira:
— Na terça-feira (passada), não teve trem. Eu tive de ir para Bangu e pegar o trem até Madureira, porque de Campo Grande não tinha. Paguei duas passagens a mais e cheguei atrasada ao trabalho.
Dia após dia, as cenas se repetem. Na estação Mato Alto do BRT, em Guaratiba, desde as 6h30 os passageiros começam a formar filas. Quando as portas se abrem, dezenas de pessoas se empurram e se acotovelam. Morador de Guaratiba, o jardineiro Jorge Luiz, de 48 anos, diz que já precisou ficar 15 dias de licença do trabalho após uma lesão num desses tumultos.
— Eu torci o joelho. Até hoje está ruim. Já arrebentei chinelo e machuquei o pé. Aqui, só vai lotado — lamenta.
Nos últimos tempos, passageiros se acostumaram com o sumiço de linhas de ônibus. Na média, apenas 40% da frota existente estão circulando. Numa concessão frágil e com dados pouco transparentes, a principal medida da prefeitura é aplicar multas: em 2020, foram 9.747 autuações. Até 16 de março de 2021, o balanço mais recente, outras 416.
O colapso se reflete nas informações dadas pelo Rio Ônibus, o Sindicato das Empresas de Ônibus, que aponta uma crise desde 2015, com agravamento na pandemia. A entidade diz ter, desde 2020, um déficit de receita de R$ 1,4 bilhão. Alega que de 2015 para cá foram fechadas 16 empresas, nove entraram com pedido de recuperação judicial, e foram demitidos 21 mil rodoviários — sete mil, apenas durante a pandemia.
— A receita caiu pela metade, e os insumos aumentaram — resume Paulo Valente, porta-voz do Rio Ônibus, que vem participando de reuniões frequentes com a Secretaria municipal de Transportes (SMTR). — A fórmula de custeio não dá mais. A tarifa hoje é R$ 4,05, mas a média cai para R$ 2,66 se contar gratuidade e integração.
Para ele, qualquer solução hoje “passa por aporte financeiro da prefeitura”. Como uma solução, ele cita o pedido para o município subsidiar o óleo diesel da frota, o que custaria cerca de R$ 45 milhões por mês. Seja qual for a medida que vier a ser acordada, ela deveria ser aplicada imediatamente, diz o empresário. Questionado sobre o custo mensal do sistema, Valente diz “não se lembrar de cabeça”, mas descartou o termo “caixa-preta” historicamente usado como forma de criticar a falta de transparência dos custos:
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Nos últimos tempos, passageiros se acostumaram com o sumiço de linhas de ônibus. Na média, apenas 40% da frota existente estão circulando. Numa concessão frágil e com dados pouco transparentes, a principal medida da prefeitura é aplicar multas: em 2020, foram 9.747 autuações. Até 16 de março de 2021, o balanço mais recente, outras 416.
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O colapso se reflete nas informações dadas pelo Rio Ônibus, o Sindicato das Empresas de Ônibus, que aponta uma crise desde 2015, com agravamento na pandemia. A entidade diz ter, desde 2020, um déficit de receita de R$ 1,4 bilhão. Alega que de 2015 para cá foram fechadas 16 empresas, nove entraram com pedido de recuperação judicial, e foram demitidos 21 mil rodoviários — sete mil, apenas durante a pandemia.
— A receita caiu pela metade, e os insumos aumentaram — resume Paulo Valente, porta-voz do Rio Ônibus, que vem participando de reuniões frequentes com a Secretaria municipal de Transportes (SMTR). — A fórmula de custeio não dá mais. A tarifa hoje é R$ 4,05, mas a média cai para R$ 2,66 se contar gratuidade e integração.
Para ele, qualquer solução hoje “passa por aporte financeiro da prefeitura”. Como uma solução, ele cita o pedido para o município subsidiar o óleo diesel da frota, o que custaria cerca de R$ 45 milhões por mês. Seja qual for a medida que vier a ser acordada, ela deveria ser aplicada imediatamente, diz o empresário. Questionado sobre o custo mensal do sistema, Valente diz “não se lembrar de cabeça”, mas descartou o termo “caixa-preta” historicamente usado como forma de criticar a falta de transparência dos custos:
— Os dados são passados à prefeitura diariamente, é tudo transparente. Desde 2015, nós falamos (dos problemas), mas ninguém acreditava.
BRT
Sistema está encampado pela prefeitura e vai precisar de aporte de cerca de R$ 60 milhões, em seis meses, para pagamento de pessoal, combustível e reforma das estações
Encampado pela prefeitura desde março, o BRT necessitará de um aporte de cerca de R$ 60 milhões, em seis meses, para pagamento de pessoal, combustível e reforma das estações. A frota já passou de 120 para 180 veículos, e a meta é ter 241 articulados até o fim de setembro — ainda longe dos 413 estipulados em 2016. Entre as estações, o plano é devolver 46 reformadas: a primeira, a de Olaria, foi reinaugurada há uma semana. Nelas, será implantado o programa BRT Seguro, de combate a vandalismo e calotes.
Com o sistema sucateado, a quantidade de passageiros também caiu. Na época de sua inauguração, a prefeitura calculava 1,4 milhão de passageiros por dia. Em março, foram 5,6 milhões de passageiros de BRT, enquanto as vans levaram, em junho, 7,4 milhões.
Metrô
Linha 4 não trouxe acréscimo de demanda esperado: o número de cerca de 900 mil por dia útil se manteve mesmo após inauguração de cinco novas estações
Entre os meios de transporte, o que sofreu maior queda de receita foi o metrô. Segundo o Metrô Rio, o sistema vem transportando em média 394 mil passageiros por dia útil, 56% a menos do que antes da pandemia, e redução no faturamento de R$ 920 milhões. Em março, o consórcio apelou para que o governo usasse o Fundo Estadual de Transporte como fonte de financiamento, hoje usado apenas como subsídio ao Bilhete Único.
Para especialistas, a maior necessidade atual do metrô é aumentar a malha, com destaque para a conclusão da estação da Gávea, cujas obras estão paradas desde 2016.
VLT
A queda de demanda no VLT chegou a 90% no início da pandemia, mas se estabilizou em 50% nos últimos meses
Um meio de transporte que sofre intensamente com essa falta de integração é o VLT. A queda de demanda chegou a 90% no início da pandemia e se estabilizou em 50% nos últimos meses. No projeto original, a estimativa era transportar 250 mil passageiros por dia, número nunca alcançado, o que tem a ver com premissas do contrato que não foram concretizadas, explica o CEO do VLT Marcio Hannas. As cinco linhas, por exemplo, viraram três, e a revitalização do Porto não foi alavancada como imaginado:
— Só temos integração pelo Bilhete Único Carioca, com ônibus e vans municipais. Mas não integramos com metrô, e há um pequeno desconto para barcas e trem (concessões estaduais). O governo estadual vem estudando uma nova fórmula para garantir melhores descontos. Há necessidade também de melhorar a integração física.
A pandemia também minou as receitas da CCR Barcas. João Daniel Marques, diretor presidente da concessionária, diz que os prejuízos em 2020 foram de R$ 125 milhões. Nos últimos tempos, a empresa foi diminuindo o número de viagens, e a linha de Charitas, inclusive, está paralisada.
Em Paquetá, a grade foi modificada de 22 para 15 viagens diárias. O intervalo entre as travessias de Niterói para o Centro aumentou de 30 minutos para uma hora fora do pico, e de 15 para 30 minutos, no rush. Por isso, mesmo com a queda de demanda, a funcionária do Tribunal de Justiça Elaina Serrano, de 40 anos, sente que a lotação aumentou:
— Priorizo as barcas na pandemia, porque é mais arejado, mas se a ideia é proteger as pessoas de aglomerações, o correto seria manter os intervalos como eram.
Trens
Agetransp registra uma intercorrência nos trens da SuperVia a cada 40 horas
Nos trens, o cenário é semelhante. Com uma dívida de R$ 1,2 bilhão, a SuperVia teve seu pedido de recuperação judicial deferido no último dia 11. A crise se explicaria pela redução à metade do número de passageiros, hoje em cerca de 300 mil por dia.
Uma nota técnica da Agetransp, agência reguladora do setor, demonstrou que, no curto prazo, a empresa teria que transportar 445,3 mil passageiros por dia útil — 48% a mais do que hoje — para fechar as contas.
Na semana passada, até o frio resultou na redução de velocidade das composições, já que a baixa temperatura causou a contração dos trilhos de aço. Só de janeiro a maio, foram 90 ocorrências abertas pela Agetransp, para apurar episódios que interferiram diretamente na circulação, média de um problema grave a cada 40 horas.
A concessionária calcula que o governo do estado deveria lhe repassar R$ 216,9 milhões como complementação dos custos para manutenção do serviço. Na última quinta-feira, a SuperVia tinha a expectativa de um aumento de tarifa de R$ 5 para R$ 5,90, o que não se concretizou após intervenção do governo do Rio. Procurada, a Secretaria estadual de Transportes afirmou que as tratativas com a SuperVia continuam e que a possibilidade de o estado realizar aporte financeiro está em análise, devido ao Regime de Recuperação Fiscal.
Novos modelos de financiamento
No ‘Boletim da Mobilidade Metropolitana’ de abril, Secretaria estadual de Transportes diz que novos caminhos devem ser discutidos, ‘uma vez que todos os sistemas de transporte do mundo passam pela mesma dificuldade’
No “Boletim da Mobilidade Metropolitana”, lançado pela Secretaria estadual de Transportes em abril, a pasta afirma, como conclusão sobre a crise do setor, que “devem ser discutidos novos modelos de financiamento baseados nas melhores práticas nacionais e internacionais, uma vez que todos os sistemas de transporte do mundo passam pela mesma dificuldade”. Especialistas concordam, e citam necessidade de revisão do sistema e maior planejamento metropolitano da mobilidade.
Atualmente, o sistema de transporte público no Rio se baseia no custeio através da arrecadação tarifária. Ou seja, o serviço se paga pelo consumidor direto. Quanto mais passageiros, mais receita. Num momento de crise de demanda, porém, fica evidente a falha no modelo que não oferece outras alternativas de financiamento
O único subsídio público existente é o aporte do governo estadual para a integração tarifária dado no Bilhete Único. Em 2019, houve R$ 335 milhões de subsídio referentes a 186 milhões de transações. Em 2020, com menos transações, o subsídio foi de R$ 194 milhões. Para comparar, somente no município de São Paulo os subsídios chegaram a R$ 3,3 bilhões em 2020.
Experiências internacionais e até no país mostram outras formas de se custear o sistema, como um fundo público municiado com arrecadações relacionadas ao uso de transporte individual, de taxação de estacionamentos e corridas por aplicativo a uso de gasolina. Além de mudanças sobre modelo de remuneração, especialistas também defendem a coordenação metropolitana do sistema, pois hoje o que se vê são meios de transporte que funcionam quase como concorrentes, atrás do mesmo passageiro.
Erro estrutural
Para Rafael Calabria, coordenador de mobilidade do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o modelo de concessões, como foi feito no Brasil, está esgotado.
— O padrão do país foi de conceder os serviços achando que as empresas vão se resolver sozinhas, é um erro estrutural, porque em nenhum lugar do mundo o transporte é autossuficiente, a tarifa não consegue pagar todo o sistema — afirma ele. — No Rio, você depende da lotação, pois a empresa ganha pelo passageiro. É uma forma de pagamento que estimula um serviço ruim e caro.
Calabria lembra que, mesmo numa licitação mais recente, de 2010, a concessão dos ônibus não debateu a revisão do modelo, e destacou que as empresas, que dominam o setor há décadas, mostravam resistência a mudanças estruturais. Outra possibilidade de melhoria, diz ele, é realizar contratos mais curtos, para diferentes prestações de serviços, como é feito na Ásia, na Colômbia e no Chile.
Engenheira de Transportes da UFRJ, a professora Eva Vider destaca a ausência de um planejamento integrado dentro da Região Metropolitana. Para ela, o Rio “parou no tempo e no espaço”, no que se refere à mobilidade urbana.
— A situação obriga a população a fazer longos deslocamentos diários, nos mesmos sentidos e horários. Além disso, há a inadequada cobertura do transporte de alta capacidade, sem integração operacional — explica ela.
Num novo modelo de remuneração, ela também sugere o caminho híbrido, com aporte de subsídio, e lembra da necessidade da revisão da fórmula atual de tarifa única:
— Quem vai do Centro para Botafogo paga a mesma tarifa de quem vai para Campo Grande. É inviável.
Maína: ‘Queremos acabar com estigma de caixa preta’
Secretária diz que licitação da bilhetagem dará maior noção da receita do sistema, além de elaborar soluções mais modernas, como desconto por fidelidade
Segundo a secretária municipal de Transportes do Rio, Maína Celidonio, a prioridade da atual gestão é recuperar a malha existente de mobilidade, em vez de realizar novas obras. Essa premissa embasou a intervenção no BRT, em março. Ela explica que a regulamentação e os dados sobre a operação de ônibus são tão frágeis que é mais fácil encampar o sistema do que realizar um aporte financeiro emergencial, pois não é possível provar ao Tribunal de Contas ou ao Ministério Público o cálculo de custos.
A equipe da secretaria diz que as informações de custos e receitas são enviadas pelas concessionárias, mas que os dados “são de baixa confiabilidade” e há inconsistências que evidenciam um “sistema desequilibrado”. Por isso, seu planejamento é estruturar um novo modelo de financiamento para o transporte público. A primeira novidade, já anunciada, é licitar a bilhetagem eletrônica — do BRT e dos ônibus —com editais em agosto.
— A licitação nos permitirá elaborar políticas tarifárias mais sofisticadas, como dar desconto para o passageiro quanto mais ele usar o ônibus — explica Maína.
O transporte público, segundo estudos da pasta, corresponde à metade de todos deslocamentos realizados na Região Metropolitana, e o maior desafio é diminuir o tempo médio de viagem, que hoje é de 50 minutos, o maior do país.
Terra: ‘Poder demais na mão das concessionárias’
Promotor afirma que empresas agem por interesse próprio e que o modelo atual de mobilidade urbana é insustentável
Desde 2003, o promotor Rodrigo Terra, da 2ª Promotoria de Defesa do Consumidor, acompanha os reajustes tarifários dos ônibus do Rio. As centenas de ações — já foram 179 procedimentos investigatórios, 87 ações civis públicas e 13 termos de ajustamento de conduta (TACs) — fizeram com o que o Ministério Público criasse uma força-tarefa para fiscalizar o setor. Sobre o colapso do sistema, Terra afirma que as concessionárias agem por interesse próprio e que o modelo atual de mobilidade urbana é insustentável.
Após tantas ações, por que o problema continua?
O número de ações por aumento abusivo da passagem se acumulou muito por causa da caixa-preta. Não é possível, até hoje, saber o real custo do serviço, porque os consórcios não apresentam números confiáveis. Em 2018, as grandes auditoras do país se recusaram a fazer a checagem das contas porque não havia informações confiáveis.
Mas agora as empresas de ônibus estão quebrando e reclamam da tarifa congelada.
Pelo contrato de concessão, a passagem precisa aumentar uma vez por ano, pelo percentual que resulta de uma fórmula paramétrica. E, além do reajuste anual, a cada quatro anos, os consórcios deveriam ser submetidos a uma revisão tarifária, que poderia jogar o preço para cima ou para baixo, mas isso nunca foi feito. Nosso Grupo de Apoio Técnico Especializado chegou à conclusão de que o lucro previsto para 20 anos de concessão foi alcançado em oito.
O modelo é insustentável?
O modelo dessa concessão concentra poder demais na mão das concessionárias. Eles poderiam usar outras fontes alternativas, como exploração comercial de terminais, mas confiam na tarifa como única fonte de receita do contrato. Para o usuário, é péssimo.
Qual a solução?
O ideal seria fazer outra licitação, e esses concessionários não poderiam mais participar. Além das investigações sobre tarifa e prestação de serviço, outro setor, da Promotoria da Cidadania, investiga suspeitas de que a licitação foi dirigida. O edital dizia, por exemplo, que as empresas tinham que ter garagem há mais de cinco anos. Agora, eles querem sobreviver de alguma forma, mas não têm interesse de servir ao público. Pelo que apuramos, e a gente pode dizer, a coisa toda é voltada para o interesse deles.
Por que o poder público não toma providência?
Acho que entra na questão de o poder ser muito concentrado. Assim fica mais difícil controlar. Mas hoje o ambiente está favorável no sentido de encerrar um ciclo. Não é o pessoal só de 2010 para cá, eles já estavam aí desde muito antes. Tenho 20 anos de Promotoria do Consumidor, e, desde 2003, questiono aumento de passagem. Sempre foi o mesmo modo de proceder, mediante pagamento de propina generalizada, como vimos nas delações premiadas. Eles conseguiam não ser incomodados. Então, o que temos hoje é insustentável.
Fonte: oglobo.globo.com, 05/07/2021
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