Acidente do bonde de Santa Teresa completa 10 anos

Processos pelo acidente que matou 6 pessoas e feriu 57 ainda não foram concluídos. Sistema passou 6 anos parado e, hoje, com tarifa alta e horário e trajeto reduzidos, não atende às necessidades do bairro.

Há exatos dez anos, um bonde superlotado e sem freios descia a Rua Joaquim Murtinho, em Santa Teresa, em alta velocidade. Descontrolado, o carro saiu dos trilhos, tombou e derrubou um poste. Seis pessoas morreram, 57 pessoas se feriram. Até hoje, ninguém foi preso ou nem sequer responsabilizado.

Foto: Pedro Balallai/VC no G1

E o que circula atualmente pelas ladeiras do bairro, segundo os moradores, não é um meio de transporte eficaz e só serve para turista.

Uma década após o 27 de agosto de 2011, o G1 foi conversar com vizinhos dos trilhos, parentes de vítimas e também conta como andam os processos do acidente que mudou para sempre a história dos bondes de Santa Teresa.

Processos ainda sem conclusão

Até hoje, ninguém foi preso ou responsabilizado pelas mortes, lesões corporais ou mesmo pelo sucateamento e falta de manutenção dos bondes.

De acordo com um levantamento feito pelo G1 no Tribunal de Justiça do RJ, o último movimento do processo criminal contra quatro funcionários da Companhia Estadual de Engenharia de Transportes e Logística (Central) ocorreu em 2019. Foi encaminhado a instâncias superiores no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A Central é a responsável pela operação e manutenção do sistema de bondes.

O estado pagou indenização às vítimas, mas o processo que pedia o bloqueio de bens de Júlio Lopes, então secretário estadual de Transportes, e mais três engenheiros e diretores da Central, no valor de R$ 6,3 milhões, foi arquivado.

O bloqueio dos bens visava a garantir o ressarcimento ao Erário dos prejuízos pela falta de manutenção, o que não aconteceu.

Em 2011, logo após o acidente, cogitou-se a possibilidade de responsabilizar o motorneiro Nelson Correa da Silva, que também morreu na tragédia. Mas moradores e colegas de trabalho saíram em defesa dele.

Bonde não serve, dizem moradores

Em 2011, ano do acidente, andar de bonde custava R$ 0,60. Hoje a passagem sai a R$ 20. Moradores cadastrados viajam de graça, mas, para quem trabalha no bairro ou quer visitá-lo, a tarifa é a mesma.

“Em nome da modernização, o governo está promovendo a gentrificação do bonde. Ele é muito querido pelos moradores, é um símbolo de resistência. Justamente por isso, é desprezado pelas autoridades públicas, que não veem a hora de privatizar o sistema. Querem elitizar ainda mais o bonde“, disse o historiador e vereador Chico Alencar, antigo morador do bairro.

Bonde de Santa Teresa, inserido na vida cultural do bairro, não parava nem no carnaval, como na apresentação do bloco Céu na Terra — Foto: Reprodução/Bloco Céu na Terra

      Foto: Reprodução/Bloco Céu na Terra

Alencar lembra que nos anos 1980 e 1990 Santa Teresa teve 16 bondes circulando o dia inteiro até o fim da noite, tanto no ramal Silvestre, a parte mais alta do bairro, quanto no Paula Mattos, que atendia a área mais carente da região. Hoje nem a metade dos carros está ativa.

Segundo ele, o bonde era tão querido que inspirou artistas, como Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, e ganhou um documentário especial dirigido por Jorge Ferreira, em 2006. Mas depois do acidente, perdeu o rumo.

“Hoje, estamos no meio do caminho: não temos nem os elétricos históricos de Lisboa [Portugal] nem os turísticos bondes de São Francisco [na Califórnia]. Temos um bonde que não atende os moradores, com tarifa que só permite ser usado por turista estrangeiro. Mas a gente continua lutando pelo retorno do bonde como transporte de qualidade para Santa Teresa”, afirmou Alencar.

O artesão Getúlio Damado, que há 37 anos faz reproduções do bonde com sucatas em seu ateliê, na Rua Leopoldo Froes, conta que nem todos os 12 mil moradores da região viram interesse em se cadastrar para andar gratuitamente no novo bonde.

“Ele não atende o horário comercial. Começa a circular tarde (às 8h) e termina muito cedo (15h), e as pessoas, o comércio, funcionam oito horas por dia. O morador não usa o bonde para ir para o trabalho e não tem o bonde para voltar para casa. Então, para que se cadastrar?“, disse o artesão Getúlio.

Promessas de expansão não cumpridas

A promessa do então governador Sérgio Cabral de modernizar, revitalizar e até ampliar o sistema nunca foi adiante. A previsão eram bondes saindo a cada dez minutos, das 5h30 à meia-noite, com possibilidade de tarifa social, e integrados ao sistema de transportes públicos da cidade.

Depois de uma paralisação de cerca de seis anos para obras, um novo bonde, sem estribo, com barras de segurança e com assento para apenas 16 passageiros, voltou a circular em 2016. Os estribos eram estreitas plataformas laterais que permitiam a viagem em pé pelo lado de fora.

Bonde de Santa Teresa — Foto: Alexandre Macieira/Riotur

Foto: Alexandre Macieira/Riotur

 

Nos antigos equipamentos, havia espaço para 32 passageiros sentados e 12 em pé, nos estribos. Hoje cada carro só leva 16 pessoas sentadas.

Somente uma linha, a Dois Irmãos, foi modernizada e reativada. A Paula Mattos, que ia até o Largo das Neves, segue esquecida, assim como o da Rua Francisco Muratori (só tem um bonde às 8h30) e a extensão até a estação Silvestre, no acesso ao Cristo.

O estudante Beniamin Miranda de Souza, de 18 anos, conta que nasceu e cresceu passando a ter o bonde como referência. Apaixonado pelo transporte, ele lembra que aprendeu os números ao identificar os bondes que passavam por sua porta.

“Passava o dia inteiro andando de bonde. Era barato e divertido. Nos fins de semana, era o programa de muitas famílias do bairro. Santa Teresa é um pedaço do interior no meio da cidade, e o bonde era parte desse cenário. A comunidade gira em torno do bonde. E se ele não atende a comunidade, perde totalmente o sentido”, disse Beni, como é conhecido.

O presidente da Associação de Moradores de Santa Teresa (Amast), o arquiteto Paulo Saad, conta que o atual não faz nem sombra à história dos 16 bondes centenários, que transportavam por mês entre 25 mil e 30 mil passageiros, e reclama de “descaracterizações do sistema”.

“Essas limitações de passageiros, de espaço, de linhas e de horários só fazem com que a volta do bonde como principal transporte de massa do bairro se torne inviável. É um custo muito alto para pouquíssimo benefício“, disse o presidente da Amast.

Segundo Saad, o governo tem uma sentença judicial a cumprir desde 2008, ainda antes do acidente: restaurar trilhos e bondes e promover a manutenção de todo o sistema.

Governo do estado estuda propostas para privatizar o sistema de bondes de Santa Teresa — Foto: Divulgação/Riotur

Fonte: Divulgação Riotur

 

“O acidente aconteceu exclusivamente por sucateamento do sistema e falta de manutenção dos bondes. Aliás, a tragédia foi a deixa para os governantes, em vez de fazer a manutenção no que já existia, e que saía muito mais barato, fazer negócios com o dinheiro público. Porque manutenção e restauração não dão voto. O que dá voto é comprar um bonde novo e tecnológico, mesmo que não atenda às necessidades da população”, afirmou Saad.

O artista plástico Marcílio Barroco, que há 37 anos vive em Santa Teresa, lamenta que as gerações futuras não tenham a oportunidade de conhecer o bonde, que era parte da história, da cultura e da vida do bairro.

“Com esse bonde limitado, Santa Teresa vive em estado de abandono. O bonde faz parte da nossa história. Estava tão inserido na nossa cultura, que antigamente tinha um bloco de instrumental, o Escorrega no Trilho, que saía fora dos períodos de carnaval. O bonde era a alma do bairro”, disse Barroco.

Privatização a caminho

Além dos problemas antigos, os moradores de Santa Teresa se veem às voltas com um novo pesadelo: a possibilidade de privatização do sistema de bonde. Segundo Saad, mais uma prova do descaso do governo do estado com o transporte público.

O que diz o governo do estado

Procurada para falar sobre a situação dos bondes de Santa Teresa, a Secretaria Estadual de Transportes (Setrans) enviou uma nota informando que, a despeito do preço da tarifa, há aproximadamente 10 mil moradores cadastrados que podem usar o bonde gratuitamente, assim como estudantes uniformizados e pessoas com mais de 65 anos e portadores do Vale Social.

A Setrans informou ainda que o sistema de bondes faz parte do programa de concessões Facilita RJ, que serão assumidos pela iniciativa privada nos próximos anos. Foi aberto um Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI), que se encerrou em abril. Duas propostas estão sendo analisadas, segundo o secretário Juninho do Pneu.

O projeto vai priorizar não só a operação e a manutenção, mas também a recuperação e ampliação do sistema. Segundo a Setrans, a privatização vai trazer melhorias para o serviço e potencializar o comércio no bairro, já que o modelo de concessão prevê a extensão da linha principal até a estação Silvestre e a ligação do Largo dos Guimarães ao ramal da Paula Mattos. A concessionária também ficaria responsável pelas oficinas e pelo Museu do Bonde.

Bonde de Santa Teresa – funcionamento

  • Trajeto: Carioca – Dois Irmãos (passando pelas estações Largo do Curvelo, Largo dos Guimarães, Vista Alegre e Largo do França)
  • De segunda a sexta: das 8h às 15h, a intervalos de 30 minutos
  • Sábados, domingos e feriados: das 10h às 15h, a intervalos de 20 minutos
  • Lotação: 16 passageiros
  • Tarifa: R$ 20 (estudantes uniformizados, maiores de 65 anos e moradores cadastrados com carteirinha não pagam)

Fonte: G1, 27/08/2021

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