Nos últimos quatro anos, o setor de ferrovias teve uma onda de novos projetos. Foram ao menos R$ 61 bilhões de investimentos contratados (considerando os valores à época das contratações), entre leilões de novos trechos, renovações antecipadas de concessões e uma nova ferrovia privada.
O impacto da maioria dessas obras está por vir, já que se tratam de projetos de longo prazo. Porém, especialistas avaliam que uma real mudança na matriz de transporte de cargas no Brasil, ainda muito concentrada em rodovias, segue distante. Uma transformação maior dependerá da atração de mais investimentos privados e da retomada do papel estatal no crescimento da malha.
Em 2022, as ferrovias deverão ser responsáveis por uma fatia de 19% na movimentação de cargas do país – sem grande variação em relação ao patamar observado desde 2004, segundo dados da consultoria Ilos. As rodovias seguirão representando cerca de 63% da matriz de transportes.
“O ente privado não vai construir uma ferrovia desbravadora, isso é papel do Estado”, diz Quintella, da FGV
“Tivemos avanços, mas pontuais. Vai demorar para colocarmos em prática uma mudança, porque, ao mesmo tempo que os investimentos são feitos, o país segue aumentando sua produção, sua safra. Os novos projetos são extremamente necessários, mas, no curto prazo, não haverá mudança na participação dos modais”, afirma Maria Fernanda Hijjar, sócia-executiva da Ilos.
“A verdade é que não tivemos evolução [nos últimos anos]. Pelo contrário, estamos perdendo trilhos, porque dos 30 mil km existentes, apenas 12 mil km estão operacionais. Temos 18 mil km de ferrovias abandonadas ou subutilizadas e muitas delas estão inclusive sendo devolvidas à União”, avalia Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes.
Ele também destaca que os investimentos contratados trarão algum avanço. “As renovações antecipadas garantirão, pelo menos, as melhorias na malha que já está em operação. Além disso, a inclusão de subsídios cruzados, com a destinação de parte dos investimentos a novas ferrovias, terão um efeito positivo”, diz ele.
Nos últimos anos, o governo federal conseguiu enfim tirar do papel o plano de renovar grandes concessões ferroviárias, como forma de antecipar novos investimentos – um plano iniciado em 2015, mas que ficou travado por anos devido à resistência do Tribunal de Contas da União (TCU).
A pioneira foi a Malha Paulista, da Rumo, em maio de 2020, que se comprometeu com obras estimadas à época em R$ 6,1 bilhões.
Desde então, a Vale também conseguiu renovar as concessões de duas ferrovias, em troca de cerca de R$ 24,7 bilhões em investimentos. Parte dos recursos foi destinado a outros projetos: à obra da Ferrovia de Integração Centro Oeste (Fico), em execução pela Vale, e à compra de equipamentos para da Ferrovia de Integração Oeste Leste (Fiol).
A MRS também teve aprovação para seu aditivo, com o compromisso de cerca de R$ 9,7 bilhões em novas obras no sistema.
Além disso, foram realizados dois leilões de novas concessões. No primeiro deles, em 2019, a Rumo conquistou o trecho central da Norte-Sul, que começou a operar em março de 2021.
A segunda licitação, do trecho inicial da Fiol, foi arrematada pela Bamin (Bahia Mineração), em abril de 2021. A empresa prevê iniciar no primeiro trimestre de 2023 as obras para concluir a via (cuja construção foi iniciada pelo Estado). Até agora, o grupo vinha avaliando os projetos e realizando diligências na obra, além de iniciar serviços de reparação de passivos ambientais.
Essa onda de investimentos recém-contratada, no entanto, já encontra problemas. As operadoras pedem que o governo federal reconheça a necessidade de um reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, devido à forte inflação de insumos observada a partir da segunda metade de 2021 – quando boa parte dos acordos já estava firmado.
“A alta de insumos é um problema efetivo, que gerou passivos e que não foram resolvidos. Os preços ainda não se reacomodaram. As obras vão acontecer, mas o governo precisa dar um conforto de sinalizar que esse abismo vai ser equacionado”, afirma Fernando Paes, diretor-executivo da ANTF (Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários).
Além dos leilões e renovações, outro avanço do setor foi a aprovação do regime de autorização, que trouxe a possibilidade de empresas privadas construírem ferrovias por conta própria, sem participação ou compartilhamento de riscos com o governo.
No mercado, a expectativa para as autorizações é positiva, porém, muito mais modesta do que as projeções exorbitantes divulgadas pelo governo federal – ao todo, os pedidos protocolados poderiam somar R$ 258 bilhões, segundo o Ministério de Infraestrutura. A expectativa é que, na prática, uma parcela pequena desses requerimentos saia do papel. Ainda assim o modelo é visto como um passo importante.
“É muito difícil prever quais e quantos projetos vão se concretizar. Quando olhamos para a experiência de terminais portuários privado, o índice de não concretização dos projetos é bastante alto, então é algo natural”, diz Paes.
Fonte: Google
Para ele, os projetos mais viáveis serão os de porte menor, com implementação mais fácil e menos onerosa, e para os quais já existe carga prevista. “Também pode ser uma boa forma de solucionar trechos das malhas já existentes que não são utilizados ou com baixa utilização”, afirma.
Para além dos investimentos privados, uma percepção geral no setor é que, para construir novas ferrovias de grande porte e gerar desenvolvimento em regiões do país onde a demanda ainda não está dada, a atuação do governo federal será indispensável.
“O ente privado não vai construir uma ferrovia desbravadora, isso é papel do Estado”, afirma Quintella, da FGV Transportes.
Para ele, não há perspectiva no curto prazo de o país voltar a ter grandes obras públicas, devido à crise fiscal. Porém, ele pondera que já é possível – e necessário – voltar a investir na elaboração de bons projetos e em planejamento para a logística do país, inclusive para além da ferrovia. “É importante pensar na intermodalidade. É equivocado pensar em investir só em ferrovias”, diz.
Paes, da ANTF, também vê a necessidade de o Estado participar de forma mais ativa. “Só autorizações ou só subsídios cruzados não vão ser suficientes. O governo federal precisa assumir um papel de protagonista da malha ferroviária, seja na construção, no financiamento ou via PPPs. Precisamos dar esse salto.”
Apesar dos desafios e custos, os especialistas apontam grandes benefícios em promover um maior equilíbrio do sistema de transportes no Brasil. Para a logística, essa mudança representaria uma redução de custos bilionária, segundo Hijjar, da Ilos.
Uma projeção da consultoria indica que se a matriz brasileira fosse igual à dos EUA – em que o modal ferroviário representa 33% do total; o dutoviário, 19%; e o aquaviário, 9% – os custos de transporte, em 2021, teriam sido R$ 208,42 bilhões menores. “É claro que é apenas um exercício teórico, mas já dá a dimensão do impacto”, diz ela.