O discurso refratário à iniciativa privada ficou para trás. Pela primeira vez em uma campanha presidencial, as concessões na área de infraestrutura de transportes viraram consenso, com diferenças sutis entre os três principais candidatos. Hoje se sabe que, independentemente de quem estiver ocupando o Palácio do Planalto, novos leilões com a previsão de investimentos bilionários vão agitar o mercado em 2015.
As divergências estão apenas em nuances. O modelo de concessão de ferrovias adotado pelo atual governo, que nunca despertou grande apetite do setor privado, é fortemente questionado entre os auxiliares de Aécio Neves (PSDB). A campanha de Marina Silva (PSB) promete mudar o “caráter arrecadatório” de algumas licitações, como as do campo de Libra e a da quarta geração (4G) de telefonia celular. O PSB diz que vai acelerar as parcerias público-privadas – modalidade de contrato desprezada nos últimos quatro anos.
Diante da perspectiva de melhoria dos serviços nos seis aeroportos privatizados até agora, a presidente Dilma Rousseff (PT) pretende fazer mais leilões no setor, caso se reeleja. Sua equipe já pensa em conceder outros três terminais. Salvador, Manaus e Porto Alegre são as opções preferenciais. Todos têm bom potencial de movimentação de cargas e precisam de investimentos em ampliação. Em conversas preliminares, técnicos do governo falam na possibilidade de exigir a construção de um novo aeroporto na capital gaúcha pela futura concessionária. Enquanto ele não ficar pronto, o consórcio vitorioso no leilão exploraria o Salgado Filho, aeroporto atual.
Um desafio para Dilma é sanear a Infraero, que perdeu metade de suas receitas operacionais e agora tenta ajustar as contas. O plano de demissões voluntárias da estatal deverá custar R$ 750 milhões. Sua perspectiva, no entanto, não é necessariamente ruim. Ela começará a receber dividendos, devido à participação de 49% que detém nos terminais concedidos, até o fim do próximo governo. Em 2016, espera-se que esteja com as contas em dia e apta para uma abertura de capital. Enquanto isso, uma subsidiária – a Infraero Serviços – será estruturada para cuidar da operação de aeroportos regionais, em parceria com a espanhola Aena ou com a alemã Fraport.
Se reeleita, Dilma pretende lançar o edital da Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (Fico) no primeiro trimestre do ano que vem. A ferrovia, com 883 km de extensão entre Lucas do Rio Verde (MT) e Campinorte (GO), deverá inaugurar o novo modelo de concessões no setor.
Outra aposta é em um plano de investimentos em corredores fluviais. A hidrovia Araguaia-Tocantins entra na lista de potenciais concessões. O governo chamaria uma empresa para administrá-la e bancar obras como balizamentos e dragagem. Em um segundo mandato, a equipe de Dilma também quer entregar à iniciativa privada mais quatro lotes de rodovias federais, mas as empreiteiras têm fortes dúvidas sobre a viabilidade dos projetos. Os estudos já estão em fase final de preparo.
No programa de Marina, chama atenção a possibilidade de que trechos mais curtos de rodovias sejam concedidos, com vistas a viabilizar a participação de empreiteiras de menor porte. Segundo o documento, a medida vai reduzir os custos de manutenção das estradas e dar agilidade às obras, por conta “da diminuição da burocracia envolvida hoje no processo”.
Um dos responsáveis pelo programa da candidata do PSB, o economista Alexandre Rands diz que, se eleita, Marina vai acelerar as concessões de estradas, portos, ferrovias e aeroportos, mas também pretende intensificar as PPPs, deixadas de lado durante a administração Dilma. De acordo com ele, a principal diferença em relação ao atual governo é que as concessões de Marina “não terão caráter arrecadatório”.
“O modelo de concessões que imaginamos é bem parecido com aquele que Dilma fala, mas bem diferente daquele que ela, de fato, implementa”, ironiza Rands. Ele menciona as bilionárias licitações do campo de Libra, no pré-sal, e das frequências de 700 Mhz da telefonia móvel 4G para criticar o apetite arrecadatório que o governo demonstra ao licitar empreendimentos ao setor privado. O programa do PSB ressalta que os processos licitatórios vão considerar a menor tarifa para o consumidor final, desde que satisfeitos os níveis de qualidade dos serviços.
A campanha de Marina não especifica quais concessões estão no radar. Apesar de ter sido escalado para debater infraestrutura com os representantes das candidaturas rivais, Rands admite que não é do ramo. Seu irmão, o coordenador do programa de governo do PSB, Maurício Rands, disse ao Valor que quem mais entende do assunto no partido é o candidato a vice-presidente, Beto Albuquerque, que já foi secretário de Infraestrutura no Rio Grande do Sul.
O PSDB também defende uma agenda ousada na área de concessões. A legenda promete entregar mais rodovias e aeroportos ao setor privado, mas deixa claro que há diferenças com o atual governo. Para o economista Samuel Pessôa, um dos auxiliares mais próximos de Aécio, não há necessidade de uma participação “tão grande” da Infraero nos consórcios que administram os aeroportos concedidos e falta “transparência” às privatizações de rodovias.
Na avaliação do tucano, em vez de juros subsidiados no financiamento do BNDES para viabilizar tarifas de pedágio menos salgadas aos usuários, o modelo mais adequado é usar PPPs. Por esse caminho, o governo pode bancar uma parte da tarifa, quando não há tráfego suficiente para o equilíbrio financeiro de uma concessão “pura”.
Um dos “erros” petistas que o PSDB pretende corrigir, segundo Pessôa, é o modelo criado para leiloar novas ferrovias. Dilma optou pela desverticalização do sistema – a concessionária responsável pela construção das estradas de ferro vende o direito de uso dos trilhos à estatal Valec, mas não pode atuar como transportadora de carga. O objetivo é estimular a concorrência e garantir livre passagem de qualquer operador. “Apesar de ser uma ideia bonita, quando observada no papel, a experiência internacional demonstra que há enormes complexidades. Os custos de transação são tão grandes que não compensam os ganhos concorrenciais”, diz o economista.
O ponto crucial, segundo Pessôa, é trazer mais investidores para a infraestrutura. “As grandes empreiteiras brasileiras já estão bastante alavancadas”, afirma. Para isso, conclui, é necessário dar clareza às regras e recuperar a credibilidade das agências reguladoras.
Programa convive com avanços e atrasos
O programa de concessões de infraestrutura de transportes viveu situação paradoxal no governo Dilma Rousseff. Houve avanços nas áreas de rodovias e aeroportos, segmentos em que se encontrou um caminho para permitir investimentos. Mas as concessões de portos e ferrovias não deslancharam, porque, na avaliação do setor privado, o governo propôs metas ambiciosas demais e teve pressa em executá-las sem projetos consistentes para fazer as licitações. Como resultado, houve questionamentos do Tribunal de Contas da União (TCU). O governo também mexeu nas regras dos dois setores na esperança de atrair investimentos, mas até hoje não conseguiu licitar terminais em portos públicos nem tirou do papel a construção de novos trechos ferroviários.
O Programa de Investimentos em Logística (PIL), lançado em 2012, previu investimentos de R$ 144 bilhões em até 30 anos em rodovias e ferrovias. “O governo fez uma série de projetos para as ferrovias, mas que não estavam detalhados para ir à licitação e os investimentos estavam subavaliados”, disse Luis Henrique Baldez, presidente da Associação Nacional dos Usuários de Transporte de Carga (Anut). Em agosto, o Ministério dos Transportes autorizou empresas privadas a elaborar estudos de viabilidade para seis trechos ferroviários do PIL, que somam 4,6 mil km, por meio de Propostas de Manifestação de Interesse (PMI).
“Os estudos levam pelo menos um ano para serem realizados e, assim, só teríamos licitação [dos seis trechos] em 2016”, disse Baldez. A preocupação da Anut é que, enquanto a demanda cresce, como no caso da agricultura, a infraestrutura continua parada. “Na situação atual, só teremos ferrovia nova lá por 2020, considerando que a construção de um trecho novo leva, em média, cinco anos para ficar pronta”, disse o executivo.
Consultor que preferiu não se identificar afirmou que a contratação dos estudos via PMI não resolve o problema pois ao contratar os estudos junto a empreiteiras os projetos tendem a ficar caros. Para o executivo, o problema no setor ferroviário foi o “açodamento” do governo em anunciar um grande número de lotes para concessão. “O prazo era mais importante do que a qualidade do trabalho.”
A Confederação Nacional da Indústria (CNI) reconhece que as licitações rodoviárias passaram por aperfeiçoamentos e que agora é preciso dar continuidade ao programa para o setor. A CNI avalia que a infraestrutura aeroportuária, embora tenha melhorado, precisa de planejamento de longo prazo mais definido. Os maiores problemas estão nos portos e ferrovias. A Secretaria de Portos (SEP) identificou 159 áreas nos portos organizados passíveis de arrendamento. Mas a CNI lembra que os editais e contratos dos blocos portuários a serem licitados foram objeto de questionamentos pelo TCU, o que atrasou o processo.
“O que dependia do Executivo, sem fatores exógenos, vai bem”, disse o diretor-geral da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Mário Povia. A agência aprovou a prorrogação antecipada da concessão de cinco terminais arrendados que vão investir mais de R$ 6 bilhões, disse Povia. Ele não conseguiu explicar, porém, por que ocorre tanta demora na aprovação do primeiro lote de concessões portuárias pelo TCU.
Apesar de alguns pedidos terem passado pela Antaq, as autorizações de prorrogação antecipada no segmento de contêineres ainda não foram concedidas pela SEP, disse Sérgio Salomão, presidente da Associação Brasileira dos Terminais de Contêineres de Uso Público (Abratec). A entidade tem nove terminais associados que aguardam o “sinal verde” da SEP para investir R$ 4 bilhões, disse Salomão.
José de Freitas Mascarenhas, presidente do conselho de infraestrutura da CNI, afirmou que é prioritário para o Brasil dobrar os investimentos em infraestrutura. “O Brasil vem investindo nos últimos anos cerca de 2,5% do PIB em infraestrutura, mas precisa, no mínimo, dobrar esse percentual.” Ele defende uma mudança de gestão na governança do setor público, que gasta pouco em relação aos valores orçados.
Cleverson Aroeira, chefe do departamento de logística do BNDES, disse que o caminho para aumentar o investimento em infraestrutura é contar com um portfólio de projetos e ter marco regulatório consolidado, além de uma programação de projetos a serem licitados ano a ano.
Em 2014, o BNDES deve desembolsar R$ 12 bilhões para projetos de infraestrutura logística, com alta de 26% sobre os R$ 9,5 bilhões de 2013. O aumento será puxado por projetos de rodovias e aeroportos. Se o programa de concessões de ferrovias deslanchar, o banco projeta desembolsos totais para a área de infraestrutura logística de R$ 17 bilhões e de R$ 22 bilhões, respectivamente, em 2015 e 2016. Mas os números podem ser menores se o PIL das ferrovias não andar.
Ontem, o superintendente de infraestrutura do BNDES, Nelson Siffert, descartou que o banco vá rever a taxa de juros para apoio às concessões de rodovias no PIL. O BNDES financia com TJLP mais spread de 2%. Desse spread, 1,5% é o máximo que bancos privados repassadores dos recursos do BNDES recebem, e o 0,5% restante fica com o banco de fomento. Os bancos privados querem aumento no spread alegando que, do contrário, não sabem se vão participar.
“Vamos oferecer aos bancos prazo diferenciado de repasses. O tempo máximo de financiamento é 25 anos, e vamos oferecer prazos menores, de 10, 15 anos. Quanto maior o prazo, maior o spread, limitado a 1,5%”, disse Siffert.
Fonte: Valor Econômico, 01/10/2014