O novo modelo de exploração do transporte ferroviário de cargas brasileiro, o “open access”, é uma mudança radical para o setor. Objeto de consideráveis críticas de fundo jurídico e econômico, ele vem passando por seguidos atrasos de cronograma para ser testado com novas concessões. Um passo importante, no entanto, foi dado no final do primeiro semestre com a regulação do Operador Ferroviário Independente (OFI), pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
Pela Resolução ANTT 4.348/2014, para prestar o serviço de transporte de carga dissociado da exploração da infraestrutura, o OFI será habilitado por um título de autorização conferido pela agência. Essa autorização carrega algumas características especiais que podem ser assim sintetizadas:
1 – Sua obtenção depende exclusivamente do cumprimento de requisitos objetivos;
2 – Esses requisitos são passíveis de alteração unilateral pela ANTT, mas esta alteração não afeta autorizações em curso, apenas novos pedidos e renovações de autorizações já outorgadas;
3 – Inexiste espaço decisório discricionário para a ANTT conferir ou não a autorização ao particular solicitante, excepcionada a hipótese de inviabilidade operacional;
4 – Há direito a renovação periódica semiautomática, revelando um período assegurado entre quatro anos e quatro anos e meio de duração da autorização, conferindo alguma segurança aos investimentos do OFI;
5 – Inexiste hipótese de extinção discricionária do título habilitante;
6 – A transferência da autorização não depende da anuência prévia da ANTT, apenas do cumprimento dos requisitos objetivos indistintamente exigidos.
O modelo ainda vigente no setor ferroviário começou a ser implantado por meio do processo de privatizações da década de 1990. Ele é denominado vertical ou concentrado, por acumular, no concessionário, não só as atividades de construção e manutenção da malha ferroviária como também o papel de operador – transportador de cargas – e de próprio usuário, enquanto proprietário da carga a ser transportada.
Em que pese ter alcançado seus objetivos de desonerar o Estado e ampliar os investimentos nas ferrovias, a concentração de atividades em um mesmo agente jogou luzes sobre aspectos concorrenciais importantes. Vieram à tona questões de compartilhamento da infraestrutura como tráfego mútuo, direito de passagem e a tutela regulatória da relação entre concessionário e usuário dependente.
Foi em resposta a essas questões que se optou por dar início ao desenho do novo modelo regulatório das ferrovias. O modelo em construção tem sido designado por horizontal ou “open access”, uma vez que sua esquematização dissocia a construção, manutenção e exploração da infraestrutura, do transporte ferroviário de cargas. Com efeito, o propósito da mudança é possibilitar que diversos operadores atuem na mesma malha ferroviária, competindo entre si e produzindo, com isso, reflexos na modicidade das tarifas e maior eficiência logística.
Esse novo arranjo contará com a atuação das novas concessionárias horizontais, da Valec e dos OFIs, da seguinte forma:
1 – A concessionária horizontal deverá construir, manter, operar e gerir a malha ferroviária, ficando, no entanto, impedida de ser sua própria usuária;
2 – Figurando como interveniente ou anuente nos novos contratos de concessão, a Valec comprará a integral capacidade operacional das concessionárias horizontais, bem como a capacidade ociosa das concessionárias verticais, remunerando-as por isso;
3 – A Valec fará ofertas públicas da capacidade adquirida a OFIs, mediante a celebração de contratos de cessão onerosa de uso de capacidade de tráfego, contemplando o pagamento de Tarifas de Capacidade de Tráfego;
4 – Os OFIs celebrarão contratos de transporte com os usuários finais, mediante o pagamento de preço livre;
5 – E, em paralelo, os OFIs celebrarão contratos operacionais de transporte com as concessionárias, regulamentando as regras de acesso e utilização da infraestrutura ferroviária, mediante o pagamento de tarifa de fruição.
A modelagem remuneratória conta, também, com a antecipação, pela Valec, de 15% de todos os investimentos em bens de capital a serem realizados pela concessionária na fase pré-operacional. Esse adiantamento será abatido linearmente durante os anos operacionais da remuneração ordinária, desde que o concessionário cumpra o cronograma de execução física. Além disso, há a promessa de que BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal financiarão até 70% dos investimentos obrigatórios previstos no plano de negócios.
A partir dessas linhas gerais, não é difícil entender que o novo modelo teve pelo menos três grandes preocupações. A primeira é a de quebrar o monopólio das concessionárias, no formato do modelo atual, fomentando a concorrência no setor. Em seguida, a de contornar o risco de demanda e a incerteza na receita do futuro concessionário, a fim de manter a atratividade das concessões para a iniciativa privada. E por fim, a de conferir provimento financeiro inicial que permita aliviar o concessionário durante a aplicação mais intensiva de capital na fase pré-operacional, envolvendo a aquisição de bens e a realização de obras.
Acontece que, enquanto não sai do papel, o modelo de “open access” segue sendo apenas isso: uma mudança radical, complexa e ousada, cercada de incertezas e promessas de que o transporte ferroviário de cargas se tornará mais eficiente e assumirá maior importância na matriz logística nacional. Do ponto de vista jurídico, após a regulação do OFI, só falta testá-lo.
*Leonardo Coelho Ribeiro é sócio na área de infraestrutura de Firmo, Sabino & Lessa Advogados; professor de cursos de pós-graduação em direito administrativo empresarial, estado e regulação na FGV Direito Rio e membro da comissão de direito administrativo da OAB/RJ e do IAB.
Fonte: Leonardo Coelho Ribeiro – Valor Econômico, 07/10/2014