A atual Pandemia do Covid-19 deitou um espesso véu na nossa percepção sobre óbitos recorrentes que vão, desde o assassinato de policiais, até os contumazes acidentes rodoviários diários. Apesar do movimento nas estradas aparentar sensível redução, a verdade é que os acidentes continuam ceifando vidas. Estatísticas apresentadas pela Confederação Nacional dos Transportes-CNT, no período de 12 anos (2007 a 2018), registram 756.732 acidentes com vítimas nas rodovias federais brasileiras, uma média de 173 acidentes com vítimas por dia – ou sete acidente por hora -, que deixaram um saldo negativo de 88.749 mortes (20 por dia) e de 1.116.612 feridos.
Se essas estatísticas forem valoradas, vão se posicionar na casa de bilhões de reais/ano, traduzindo-se em incontáveis custos sociais (mortos, feridos e incapacitados) e econômicos (perdas materiais de veículos e cargas), isso sem falar na tal perda de produtividade, argumento alegado pela Ford para deixar o Brasil.
Como resultado dessa tragédia paralela ao Covid, o Brasil é o quinto país que mais mata em acidentes de trânsito, segundo OMS. Ora, como chegamos a essa situação?
Bem, essa tragédia anunciada começou no final da década de 1950, com a gradativa extinção dos trens de passageiros e erradicação de linhas “antieconômicas”, atingindo o seu apogeu em 1996 com a concessão de 29 mil km da nossa malha ferroviária à iniciativa privada por 30 (trinta) anos. Os mais aguerridos defensores dessa “privatização” tupiniquim alegam a justeza da medida que interrompeu a drenagem de recursos públicos para ferrovias abrigadas no seio da RFFSA, muitas das quais classificadas como obsoletas, ineficientes e de baixíssima produtividade.
O fato é que deixamos de ser um País dependente da ferrovia para ser dependente das rodovias. Ficamos hipnotizados pela sensação de autonomia da mobilidade do automóvel e nos esquecemos completamente do trem como transporte de grande capacidade de pessoas e cargas, seguro, rápido e de alta eficiência energética, sobretudo para um País de dimensões continentais como o nosso.
No atual modelo ferroviário brasileiro, algumas Concessionárias apresentam altíssimos índices de produtividade mas, infelizmente, com foco voltado apenas para exportação de commodities minerais e agrícolas, transportando pouquíssima tonelagem em carga geral e nada, nada mesmo, de passageiros, simples assim.
Muitos perguntariam se será possível voltarmos a ter trens de passageiros? Creio que sim, sem dúvida, mas começando com modernos e rápidos trens regionais de passageiros para curtas e médias distâncias (nada de trem bala, por enquanto) e, é claro, pequenos trens cargueiros (denominados shortlines nos EUA e Europa) transportando carga geral e reduzindo os acidentes e o tráfego de caminhões das estradas. A grande sacada é que tudo isso poderia ser feito em pouco tempo, com custos razoáveis sem nada de faraônico.
Mas como? Onde seriam implantados esses trens? Bem, segundo os especialistas, dos 29 mil km entregues à inciativa privada em 1996, apenas 14 mil km estão em uso efetivo. Os 15 mil restantes encontram-se ociosos ou completamente abandonados, pois não tem o pedigree dos corredores de exportação.
Causa indignação o fato de o governo federal não ter ainda uma solução para o descaso das Concessionárias para com o Patrimônio Ferroviário (leia-se, do Povo Brasileiro), em que pese estar promovendo de forma célere a renovação antecipada das atuais Concessões, que vencem somente em 2026, por mais 30 anos.
A bola da vez é uma tal de Ferrovia Centro Atlântica-FCA, ligada ao Grupo VALE, com 7.584 km de trilhos espalhados, principalmente, pelos Estados de Minas, Rio e São Paulo, dos quais 5.365 km estão completamente abandonados à própria sorte há muitos anos.
Ao leitor que queira constatar isso, ou seja, a evidência desse abandono que soma mais de 800 km de linhas apenas no nosso Estado, aí vão algumas pistas: seguindo para Vitória via BR-101, pode observar-se a linha abandonada há anos pela FCA a partir de Itaboraí passando por Rocha Leão, Quissamã, Macaé, Campos e outras, até a Capital Capixaba; quem for de Angra dos Reis a Barra Mansa, via Lídice, Rio Claro e Getulândia, vai ver a linha abandonada desde 2010. De Três Rios a Além Paraíba, MG, passando por Anta e Sapucaia, a linha vazia de trem segue margeando o Rio Paraíba.
Existem mais trechos abandonado no Estado do Rio, mas vamos ficar por aqui para chamar atenção de outro aspecto importantíssimo: da leitura da documentação que suporta a renovação da FCA, está bem definido que ela vai investir mais de R$ 3 bilhões na compra de locomotivas, vagões, equipamentos de via, melhoria das linhas, ampliação de pátios, oficinas, etc., com foco somente no Estado de São Paulo e alguma coisinha em Minas. Nosso Estado não vai receber um centavo. Nada, absolutamente nada.
Isso é uma excrescência, deixar mais de 800 km de linhas abandonadas sem nenhuma perspectiva de reparo para uso futuro. Creio que está na hora de o Governo do Estado, aliado à nossa bancada federal em Brasília e mais alguns prefeitos de cidades que eram servidas pela FCA, se manifestarem junto ao Ministério da Infraestrutura, ANTT e DNIT, quanto a esse enorme descaso que mais assemelha a um estrupo logístico. Precisamos cobrar mais respeito com o ERJ, et pour cause, nosso Estado é berço da primeira ferrovia do Brasil, a E. F. Mauá, ora completamente esquecida pelo IPHAM, em Magé.
Antonio Pastori: Pós graduado em Engenharia Ferroviária, Mestre em Economia, Pesquisador Ferroviário e assessor da Presidência da AENFER
Artigo publicado no jornal Correio da Manhã, 19/01/2021