O Globo – O Brasil patina diante do potencial do setor ferroviário. Enquanto a incerteza persiste, perdemos mais do que trilhos. Perdemos competitividade, talentos, tempo e direção.
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Ao longo dos últimos anos, a combinação de instabilidade econômica e planos de governo inconclusos coloca a ferrovia numa espécie de espera permanente. São projetos que não saem do papel, investimentos paralisados no meio do trajeto e uma formação técnica que se perde nos desvios do caminho. Enquanto isso, o mundo segue em movimento, investindo em expansão e tecnologia ferroviária como estratégia de desenvolvimento econômico e social.
Talvez passe despercebido que perdemos gente. Técnicos qualificados, engenheiros experientes, jovens promissores que optam por setores mais estáveis ou simplesmente por outros países. Num setor que exige conhecimento acumulado, precisão e confiança, essa perda pesa mais que qualquer oscilação no câmbio.
O paradoxo é evidente: vivemos num país continental, onde a eficiência do transporte de carga e de passageiros poderia ser profundamente transformada pela malha ferroviária. Ainda assim, os projetos chegam aos gabinetes, mas levam décadas para ser concluídos. Temos a Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), cujas obras começaram há 14 anos, e até o momento nenhum trecho funciona. A Transnordestina oscila há quase 20 anos, entre obras, paralisações e mudanças de traçados. O projeto da Ferrogrão ainda enfrenta obstáculos jurídicos.
Há uma cultura de ciclos curtos e falta de continuidade. Cada nova gestão recomeça a discussão do ponto zero. O atual Plano Nacional de Ferrovias desperta a mesma dúvida: haverá recursos disponíveis e sistema de garantias para expansão com investimento público-privado?
Para além disso, vemos um cenário de fragilidade fiscal, inflação persistente e desvalorização cambial, que tende a reduzir o apetite dos investidores por projetos de longo prazo, como os de infraestrutura. Tal situação pressiona negativamente os níveis de confiança do empresariado e compromete decisões de investimento, especialmente no setor ferroviário, intensivo em capital e com prazo de retorno longo.
Como integrante da indústria ferroviária nacional, nos preocupam também acordos do atual governo que visam a priorizar o fornecimento externo em grandes projetos de ferrovia. É sempre bom lembrar que o mercado ferroviário brasileiro não sofre de ausência de capacidade, mas de falta de demanda regular e previsível.
Toda essa dinâmica fragmentada mina o interesse de quem poderia se especializar. Como formar mão de obra técnica se os projetos não avançam? Como manter profissionais em campo quando a instabilidade faz parecer que a oportunidade é provisória? Como convencer um jovem a se dedicar a uma área em que o trem parece ser algo antigo, do passado?
É preciso esforço coordenado entre governo, empresas e instituições de ensino para restaurar o valor estratégico da ferrovia. Não há como falar em transição energética e deixar os trilhos de lado. Um trem retira centenas de caminhões das estradas, reduz custos e emissões. É preciso pensar em políticas que garantam continuidade, segurança jurídica e estímulo à formação. Investir em ferrovia é também investir em conhecimento técnico, em engenharia nacional, em permanência.
Trens, por mais modernos que sejam, não se movem sozinhos. Precisam de quem os projete, os opere, os mantenha, acredite neles. No Brasil, essa gente está se tornando rara. Ou viramos o jogo ou veremos os melhores embarcarem noutras direções.
*Por: Victor Araújo é engenheiro metalúrgico e industrial e CEO da Plasser do Brasil
Fonte: oglobo.globo.com, 25/08/2025