O governo decidiu impor regras duras e restrições para quem estiver interessado em assumir a gestão e manutenção da ferrovia Norte-Sul, no trecho de 1,5 mil km de extensão que liga as cidades de Porto Nacional (TO) e Estrela D’Oeste (SP). Trata-se do primeiro trecho ferroviário que, na prática, testará o novo modelo de concessão desenhado para o setor, já que boa traçado do traçado já foi concluído pela Valec.
Pelas regras apresentadas pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), estão impedidas de participar do leilão as atuais concessionárias de ferrovias que operam no país, uma decisão que afeta diretamente empresas como ALL, FCA, FTC, MRS, Transnordestina e Vale, donas de trechos de concessões feitas na década de 1990 e que estão em vigor. Para essas empresas, segundo a ANTT, só resta uma brecha de participação no leilão, caso seus acionistas decidam criar uma nova companhia, completamente dissociadas das atuais que atuam nas concessões.
A agência também decidiu aplicar fortes exigências atreladas a conteúdo nacional, com cotas obrigatórias para aquisição e contratação de equipamentos, sistemas e até profissionais. Qualquer tipo de equipamento que vier a ser utilizado para garantir a operação da ferrovia – como placas de apoio, talas de junção, grampos de fixação e bloqueios da malha – terá a cota mínima de 75% de nacionalização. Sobre os sistemas operacionais (software) usados no gerenciamento da malha, a faixa obrigatória é de 30% para produtos desenvolvidos no Brasil. No quesito mão de obra, a minuta de edital exige que pelo menos 50% dos funcionários da concessionária (como engenheiros e operadores de trens) sejam brasileiros ou naturalizados.
A proteção ao mercado nacional também passa pela aquisição de trilhos, que deve respeitar o volume de pelo menos 75% de material feito no Brasil. Essa regra, entanto, só passa a valer se houver ao menos um fabricante nacional de trilhos com capacidade suficiente para atender a demanda. Hoje, nenhuma siderúrgica produz trilhos no Brasil.
A lista de imposições também determina que a concessionária deverá instalar ao menos 36 estruturas de fibras ópticas, em dutos subterrâneos, ao longo dos 1,5 mil km da ferrovia. Mais que instalação, a empresa terá de se responsabilizar pelo bom estado de uso dessa malha, respondendo pela manutenção e eventuais reposições de material e equipamentos em caso de falhas, durante toda a concessão de 35 anos. Os serviços oferecidos a partir dessa estrutura, no entanto, não ficarão com o concessionária. A regra estabelece que a empresa terá de assinar um termo de doação de toda a estrutura de fibra para a Empresa de Planejamento e Logística (EPL), estatal vinculada ao Ministério dos Transportes. A partir dessa doação, a EPL ficará livre para fazer o que quiser com a fibra: distribuir gratuitamente, vender, alugar, etc.
O modelo de negócios da concessão proposta pelo governo é conhecido como open access. Em vez de conceder a malha para um único operador, como ocorreu na década de 90, o governo decidiu adotar a estratégia de acesso aberto, no qual a estatal Valec vai contratar a empresa que é alvo deste leilão, para fazer a operação e manutenção da ferrovia. A partir daí, a Valec comprará desta empresa 100% da capacidade de transporte da malha, para então oferecer essa capacidade a qualquer companhia interessada em transportes suas cargas.
Em um aceno de que a operação permitirá outras fontes de renda ao concessionário – além da disponibilidade de capacidade de transporte da malha -, a ANTT estabeleceu que a empresa poderá buscar receitas extraordinárias. Para isso, no entanto, vai precisar de muita criatividade.
Pelas regras, o concessionário não poderá atuar diretamente na operação e manutenção de trens de cargas ou passageiros que passem pela malha, ou seja, restringindo sua atuação à oferta dos trilhos e sua operação. A empresa, segundo a minuta de edital, também não poderá atuar em operações de armazenagem, estadia e outras atividades relacionadas à exploração de polos e terminais logísticos instalados ao longo do trecho.
A concessionária que assumir o trecho terá a missão de implantar os sistemas de sinalização, comunicação e energia, além de operar a ferrovia pelo prazo de 35 anos, sendo prorrogáveis uma única vez, pelo mesmo período.
A proposta da ANTT ainda pode ser modificada. Nesta semana, a minuta do edital da Norte-Sul é tema de audiências públicas em Palmas (TO), Fernandópolis (SP) e Anápolis (GO). O objetivo é colher sugestões, críticas e eliminar dúvidas, material que apoiará o edital definitivo da malha.
O Valor apurou que, na ANTT, há disposição de flexibilizar as regras quanto à participação no leilão das atuais concessionárias de ferrovias, caso haja manifestação de interesse. Seria necessário, no entanto, levar em consideração uma restrição que consta nos contratos dessas empresas, assinados na década de 1990. Segundo um técnico da agência, termos desses contratos estabelecem que essas empresas só tinham permissão de atuar, exclusivamente, naqueles trechos concedidos, sem permissão para entrar em outras operações.
Dos 1,5 mil km do traçado que irá à leilão, cerca de metade está em fase de conclusão pela Valec, entre as cidades de Palmas (TO) e Anápolis, em Goiás. Há duas semanas, esse trecho foi alvo de testes pela estatal, que informou não ter encontrado problemas no transportes de cargas. A outra metade do traçado, que liga Anápolis até Estrela D’Oeste, em São Paulo, tem cerca de 60% de suas obras concluídas em segundo o governo, será entregue até dezembro deste ano.
O prazo de conclusão, no entanto, pode atrasar mais uma vez, porque os trilhos adquiridos pela Valec para conclusão da Norte-Sul tem previsão de chegar aos canteiros de obra somente em meados de junho.
Para ANTF, modelo é ‘extremista’ e ignora colaboração de concessionárias
As regras apresentadas pelo governo para a concessão da ferrovia Norte-Sul são criticadas pela Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), que representa as atuais concessionárias do setor. Muitas das exigências, diz Rodrigo Vilaça, diretor-executivo da ANTF, simplesmente não têm nenhuma razão técnica para existir e demonstram que o governo ignorou a experiência e relevância das atuais empresas do setor.
Esse tipo de situação é de um extremismo tão grande, que não tem sentido. O que vemos claramente é os vagões são colocados na frente das locomotivas, diz Vilaça. Questionado sobre a restrição de participação no leilão para as atuais concessionárias, Vilaça recorre à tentativa feita pelo governo no ano passado, durante as concessões dos aeroportos de Confins e Galeão, quando tentou barrar a entrada de concessionárias que já tinham vencido leilões nos aeroportos de Guarulhos, Viracopos e Brasília. Pressionado pelas empresas e pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o governo acabou recuando e permitiu a participação das empresas.
O governo falhou conosco, ao estabelecer um modelo de novas concessões sem sequer ouvir seus atuais usuários. Nós poderíamos ter sido um agente facilitador de busca de novos investidores, poderíamos ajudar, mas infelizmente não fizemos parte do projeto de expansão da malha, afirma Vilaça.
Apesar de o governo anunciar que pretende iniciar a operação do novo trecho da ferrovia Norte-Sul já no próximo semestre, Vilaça afirma que ainda há questões em aberto, principalmente sobre como o novo modelo de concessão – com vários agentes transportando carga sobre os trilhos – vai conviver com o antigo – onde apenas uma empresa atua naquele traçado.
Ainda existem sérias dúvidas sobre a operação dos dois modelos. Até agora, cerca de 70% dos esclarecimentos foram feitos, mas ainda há pontos em aberto e questões operacionais que não foram bem definidas com a atuação da Valec, afirma Vilaça.
Atualmente, a mineradora Vale atua no trecho da ferrovia Norte-Sul, entre as cidades de Palmas e Açailândia. O novo concessionário, portanto, depende de autorização da companhia para utilizar esse traçado, se for necessário. Faltou abertura para colaboração. Vejo a situação atual como um descrédito do governo para com as atuais concessionárias.
Fonte: Valor Econômico, 27/02/2014