O principal gargalo da mobilidade brasileira está, hoje, no transporte de cargas, afirma o ex-secretário municipal de Transportes de São Paulo Frederico Bussinger.
“A carga não fala. Essa é a primeira razão [para que o transporte de carga fique esquecido]. E a segunda existe um pensamento arraigado que a carga é um problema do empresário”, diz, em entrevista à Folha.
Engenheiro e economista, ele atua como consultor em planejamento e gestão portuária e hidroviária, logística, transporte público, manutenção e planejamento urbano. Foi ainda secretário-executivo do Ministério dos Transportes no governo Itamar Franco (1992-94).
Para Bussinger, o problema da mobilidade passa também pela questão logística. Ele sugere que os governantes busquem soluções no exterior, assim como fizeram no caso das ciclovias, para tentar resolver a situação do transporte de carga nos grandes centros urbanos.
Leia os principais trechos da entrevista:
Folha – Na sua avaliação, qual é o principal gargalo da mobilidade no Brasil?
Frederico Bussinger – O gargalo está no transporte de cargas. É surpreendente a desconsideração do fluxo de carga no planejamento urbano, tanto nos planos de mobilidade quanto nos planos diretores. É como se fosse um assunto que não existe. E os números da carga são muito significativos. Digo isso porque o viário que circula carga é o mesmo que circula gente.
Como assim?
O viário que está aí está dado, seja rodoviário ou ferroviário. E neste viário você tem o compartilhamento do uso. Neste mesmo viário circulam tanto gente quanto carga. O mais lógico seria que, ao fazer o planejamento da mobilidade, a carga fosse considerada em conjunto, e isso não acontece.
Hoje a carga fica em segundo plano no planejamento das cidades?
A carga é deixada de lado. E pior do que isso, existe uma ilusão de que você simplesmente pode afastar a carga, que ela arruma um jeito para circular. Tanto é que as políticas públicas em relação à carga são de restrição. Restrição geográfica (não pode circular por aqui), restrição temporal (não pode circular neste horário) ou restrição tecnológica (não pode circular tal veículo). Como se fosse possível funcionar uma cidade sem circulação de carga. E não estou falando apenas da carga ligada ao processo produtivo. Só a carga necessária para abastecimento urbano já é suficiente para ser bem tratada.
Como fazer a conciliação entre carga e os demais modais?
Hoje, por exemplo, a bicicleta tem atenção maior do que a carga. Sempre que se discute a questão da bicicleta, são usados exemplos internacionais, “porque na Holanda é assim, porque na Dinamarca, na França.” Mas por que não se usa o mesmo raciocínio para a carga? Todos esses países têm muitos modelos bem mais inteligentes para a circulação da carga. Então, a minha sugestão é a seguinte: use o mesmo raciocínio para a carga. Vejam o que está sendo feito em outros países em relação a esse assunto.
Por que o senhor acha que a carga fica tão esquecida?
Porque a carga não fala. Essa é a primeira razão. E a segunda é que existe um pensamento arraigado de que a carga é problema do empresário. Ele vai ganhar dinheiro, então ele que se vire para resolver. E é um equívoco, porque carga é importante para a vida da cidade. A alface que você come, a água que você bebe, a pizza que o cara te entrega, isso tem que chegar de algum jeito.
Que exemplos internacionais poderíamos seguir?
Alguns modelos de distribuição de Nova York, Japão, mas qualquer exemplo vai ser restritivo. Pontos de concentração de distribuição de carga para realizar distribuições noturnas seria um enorme avanço.
Qual a sua avaliação sobre um aumento da utilização do transporte ferroviário?
Eu acho que tem [que aumentar], por razões logísticas e ambientais. Mas a maior dificuldade é implementar um pátio ferroviário em São Paulo. Os locais em que há possibilidade de fazê-lo foram pensados como projetos de utilização imobiliária. Não adianta a linha passar por São Paulo, tem que ter centros logísticos para a distribuição.
E a navegação, seria possível usar os rios para o transporte de carga?
São Paulo é privilegiado e poderia usar os rios não só para carga, mas também para passageiros. A Folha divulgou há alguns dias reportagem sobre navegação em Paris. Poderíamos fazer isso aqui. É verdade que os rios estão poluídos, mas isso não impede a navegação de carga e seria um estímulo para limpar o rio. Existem coisas que estão sendo feitas mundo afora, mas que não estamos usando. Somos seletivos.
A distribuição noturna de carga é uma saída?
A distribuição noturna de carga é algo da maior importância, você pode reduzir a circulação dos caminhões, mas empaca na segurança. Para grandes estabelecimentos, shoppings e supermercados, existe, mas é menor. Para o pequeno comerciante é mais difícil. Outro problema é que vai haver custo adicional. Seria preciso ter um sistema que incentivasse o comércio a fazer essa operação noturna sem que houvesse e ônus. No Japão, existe um sistema com centro de distribuição nos bairros. Cada loja vai lá e busca sua mercadoria. Poderíamos ter isso em bairros.
Fonte: Folha de S. Paulo, 24/09/2015