As obras do último trecho do Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT) no Centro vão ajudar a desenterrar mais um pedaço da história do Rio de Janeiro. Previsto para sair da Central do Brasil e atravessar a Avenida Marechal Floriano em direção à Avenida Rio Branco, a nova linha passará por cima de um sítio arqueológico do século XVIII, que pode ser o Cemitério de Pretos Novos do Largo de Santa Rita, construído em frente à igreja de Santa Rita. A descoberta fez as obra do VLT ficarem parada cinco meses, aguardando liberação dos órgão de proteção ao patrimônio. Segundo historiadores, um cemitério funcionou ali entre 1722 e 1769, quando o mercado de escravos foi transferido da área urbanizada da cidade para a região do Valongo. Aquele teria sido o primeiro local da cidade de sepultamento de pretos novos (africanos mortos na chegada ou durante a viagem de navio até o Rio), antes mesmo do cemitério da Rua Pedro Ernesto, na Gamboa, descoberto na década de 1996, que funcionou entre 1779 e 1830.
Com cerca de 1 quilômetro de extensão, o traçado da nova linha (Central-Santos Dumont) vai percorrer toda a Rua Marechal Floriano, que no passado era a Rua Larga, com três novas estações. Como se trata de uma área de potencial arqueológico, o Consórcio VLT contratou uma empresa especializada, a Artefato, para realizar sondagens e pesquisas na área. De acordo com o “Relatório de avaliação de impacto ao patrimônio arqueológico e histórico na área de implantação do sistema de VLT” apresentado pela empresa de arqueologia ao IPHAN, na região foram identificados três sítios, o mais importante é o do Largo de Santa Rita. Os outros dois, da Igreja São Joaquim (derrubada nas reformas de Pereira Passos, no início do século XX) e Caminho Largo (antiga Rua Larga de São Joaquim), poderão trazer informações sobre a história de ocupação da Avenida Marechal Floriano. A intervenção faz parte do Projeto Porto Maravilha, iniciado 2011, que revelou dezenas de sítios arqueológicos no Centro histórico da cidade nos últimos anos, entre eles, o Cais do Valongo, que foi declarado Patrimônio da Humanidade ano passado.
A Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp), gestora da prefeitura na Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha, diz que a existência do cemitério ainda está sendo pesquisada: “Em sua última fase de implantação na Avenida Marechal Floriano, o trecho passará por pesquisa arqueológica como determina a legislação para melhor compreender o sítio arqueológico que se supõe que exista no Largo de Santa Rita, hoje ainda no campo da especulação.”, diz a nota da CDURP. Alguns historiadores, como Nireu Cavalcanti, acreditam que o cemitério pertenceu à igreja e recebeu paroquianos ou integrantes da irmandade de Santa Rita.
Os arqueólogos que trabalharam nas pesquisas iniciais seguem a tese de que ali existiu o primeiro cemitério de pretos novos do Rio. No relatórioapresentado ao Iphan, a empresa Artefato explica que “durante o governo de Aires de Saldanha e por ordem do Rei, em 1722, foi implantado o Cemitério dos Pretos Novos no terreno em frente à Igreja de Santa Rita. A escolha não foi aleatória, pois na época a região ficava longe do perímetro urbano da cidade e o acesso para o translado dos corpos seguiria pelo caminho retilíneo da Rua Direita até o Largo”. De acordo com o documento, o cemitério “ficou ativo até 1769, quando o vice-rei Marques do Lavradio transferiu o mercado de escravos da rua Direita e o cemitério para o Valongo.”
Nas sondagens no Largo de Santa Rita, foram achado fragmentos de ossos humanos (entre maxilar, mandíbula, falange, tíbia, vértebra, crânio e 48 dentes) e pedaços de faiança, porcelana, vidro e cerâmica, três cachimbos. Também foram encontradas uma estrutura de alvenaria em rochas. Além dos ossos achados nos pontos de sondagens, a equipe ouviu de pessoas da região relatos de que em outros dois pontos da área onde já foram achados ossos humanos durante escavações para obras públicas. A partir destes dados, de informações históricas e do cruzamentos cartográficos, a equipe de arqueologia desenhou um polígono de delimitação do antigo cemitério. A proposta da equipe de pesquisa, coordenada pela arqueóloga Maria Dulce Gaspar, e apresentada ao Iphan, é recolher algumas amostras do material encontrado e fazer uma demarcação do piso, com um material ou cor diferente, para que ao andar pela rua os cariocas saibam que estão pisando num sítio histórico. A área seria fechada e os trilhos seriam implantados por cima. Procurado pelo Globo, o Iphan informou que irá aguardar o término da pesquisa para se pronunciar sobre o sítio.
O arquiteto e historiador João Carlos Nara Junior já escreveu um livro sobre a Igreja de Santa Rita e tem se dedicado a pesquisar a história deste cemitério. Ele acredita que o lugar era utilizado para enterro de escravos que chegavam à cidade na época em que o comércio escravagista ocorria na área urbanizada do Rio. Segundo ele, não há informações sobre as dimensões, nem a quantidade de pessoas enterradas lá. E as escavações podem esclarecer a localização do cemitério.
— Podemos dizer que ele ficou em funcionamento por 50 anos, até que todo o complexo escravagista foi transferido do Valverde para o Valongo. Mas não podemos esquecer que aquele terreno foi muito mexido: em 1839 foi feito um chafariz no local, que depois foi trocado por uma fonte. E em 1904, vieram as obras de Pereira Passos. Acredito que poderão encontrar fragmentos, mas não o cemitério inteiro — diz ele que está escrevendo uma tese de doutorado sobre o Cemitério dos Pretos Novos do Largo de Santa Rita.
Em seu artigo “Controle sanitário dos negros novos no Valongo”, o historiador Cláudio Honorato cita a existência do cemitério: “Até 1722 os africanos e seus descendentes eram enterrados em um pequeno cemitério no Morro do Castelo aos fundos do hospital da Santa Casa da Misericórdia, entretanto o pequeno cemitério já não comportava mais o número crescente de enterros devido o aumento constante tráfico negreiro. Para solucionar esta questão foi construído no Largo da Igreja de Santa Rita um cemitério para os pretos novos, por ordem do governador do Rio de Janeiro, Ayres de Saldanha de Albuquerque Coutinho Matos e Noronha. A administração do cemitério foi dada a cargo do padre de Santa Rita, encarregado de lavrar os óbitos e de cuidar dos sepultamentos”.
Para integrantes do movimento negro, o local é sagrado, já que estariam sepultados negros escravizados, e deve ser tratado com respeito.
—Antes de começar a obra a concessionária deveria apresentar e discutir com o movimento o que será feito ali para marcar a existência do cemitério. Estamos querendo conversar com representantes da prefeitura para chegarmos a um acordo, se não formos ouvidos, vamos procurar a Justiça — avisa Luiz Eduardo Oliveira Negrogun, presidente do Conselho Estadual dos Direitos do Negro (CEDINE).
Fonte: O Globo, 17/06/2018