Na fila da estação do BRT em Mato Alto, zona oeste do Rio de Janeiro, sob uma garoa fina no início da manhã da última sexta-feira (10), a manicure Cirlei Martins, 51, queixava-se da piora na forma como vai de casa ao trabalho.
“Antes do BRT, eu levava duas horas para chegar ao trabalho. Depois que inaugurou tudo [em 2016], cheguei a fazer em 45 minutos. Agora é pior: levo as mesmas duas horas e tenho que fazer três baldeações. ”
O diagnóstico de Cirlei coincide com a avaliação de especialistas sobre o sistema de transporte da cidade. Após uma década de investimentos bilionários em infraestrutura de mobilidade, impulsionados pelas Olimpíadas de 2016, o município convive com falhas na operação no setor.
Áreas da zona oeste estão abandonadas pelos ônibus que deveriam circular por ali, BRT ficam lotados, e os trens, até fora do horário de pico, têm serviços irregulares e cancelados. As concessionárias, por sua vez, enfrentam uma penúria financeira que compõem o retrato atual do sistema.
O estágio para a solução na gestão do sistema é diverso, a depender do modal de transporte. A estrutura erguida, para especialistas, indica possibilidades de melhoras. De acordo com o Mobilidados, plataforma do ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento), 35% dos moradores da cidade vivem a até um quilômetro de um meio de transporte de média ou alta capacidade.
No Índice Folha de Mobilidade Urbana, o Rio está com resultado ruim, mas entre as capitais que aparecem com alguma perspectiva de atingir a mobilidade sustentável num prazo razoável.
Principais meios de transporte da cidade, os ônibus passam por um processo de transição na forma de operação.
A prefeitura estatizou no ano passado a gestão dos BRTs (corredores de ônibus) após uma série de falhas do antigo concessionário. Em janeiro de 2021, 55 das 134 estações estavam fechadas e apenas 120 veículos estavam rodando –contra quase 400 em 2016.
O objetivo é fazer uma nova licitação para operação do serviço, que atendeu a 8 milhões de pessoas em dezembro de 2021. A prefeitura adquiriu novos coletivos e atualmente 200 articulados rodam pelos corredores com o apoio de outros 138 “comuns”. Contudo, as próprias autoridades reconhecem estar longe do ideal.
Cirlei, por exemplo, não deveria estar numa fila numa calçada sob garoa às 6h, nem embarcar num ônibus comum. O BRT, cuja obra dos três corredores consumiu cerca de R$ 6 bilhões, foi feito para circular com veículos articulados com passageiros embarcando numa estação coberta.
“O sistema em si é bom. Só falta organizar melhor”, afirma a manicure.
Os ônibus “comuns”, que rodam as ruas da cidade e atenderam a 48 milhões de passageiros em dezembro, também vivem uma crise. Até o mês passado, 58% das linhas eram consideradas inoperantes —com menos de 20% da frota ideal.
Um acordo judicial entre prefeitura, concessionárias e Ministério Público deu nova perspectiva de solução. Desde o dia 1º de junho, alguns serviços começaram a ser retomados. A readequação total, porém, só ocorrerá em janeiro de 2023.
Em Sepetiba, na zona oeste, área mais isolada pela falta de ônibus, a auxiliar de controladoria Tamires Santos, 31, lamentava a perspectiva de ser mais uma vez descontada em R$ 11,50 pela hora que atrasaria para chegar ao trabalho.
“A linha nova que colocaram não tem hora para passar. Meu patrão sabe das dificuldades, mas no final do mês o desconto vem”, disse ela.
O redesenho da gestão dos ônibus passa pela adoção do subsídio à tarifa. A partir do acordo, a prefeitura vai pagar às empresas R$ 1,78 por quilômetro rodado pelos ônibus. Entre junho e dezembro, a estimativa é de R$ 307 milhões com esse gasto.
“O modelo de remuneração baseado no número de passageiros leva a distorções”, afirma a secretária municipal de Transportes, Maína Celidônio. “Enquanto o Brasil crescia e a economia estava bombando, a receita da tarifa dava conta da rentabilidade das empresas. Uma vez que a demanda começa a cair, a empresa diminui o custo, carregando o maior número de passageiros possível, ficando lotado. A linha que não paga a operação, encerra. ”
A “virada” mais importante no serviço de coletivos é a licitação da operação da bilhetagem eletrônica. A partir dela, a prefeitura espera ter controle total sobre a gestão do sistema.
O fim da chamada “caixa-preta dos ônibus”, porém, tem enfrentado reveses na Justiça. Lançada em novembro do ano passado, a licitação sofreu adiamentos sucessivos que a empurraram, até o momento, para julho.
Todas essas mudanças eram defendidas há anos por especialistas. O vereador Tarcísio Motta (PSOL), opositor da gestão Paes e membro da CPI dos Ônibus, de 2018, afirmou ser favorável a elas.
“A prefeitura está tomando medidas corretas. Estamos hoje pagando o preço da falta de transparência desse sistema viciado que as gestões anteriores do próprio Eduardo Paes criaram. ”
Para a diretora-executiva do ITDP Brasil, Clarisse Linke, as dificuldades atuais do setor mostram que apenas obras são insuficientes. “Não basta só investir na infraestrutura. É importante estabelecer um marco regulatório sobre o que cabe à prefeitura e aos concessionários. Estou otimista porque estão conseguindo mexer nesse vespeiro”, diz ela.
O prefeito Eduardo Paes (PSD) afirma que em sua primeira gestão (2009-2012) se concentrou em formalizar um contrato com as empresas do setor. Até 2010, os ônibus rodavam com permissões emitidas sem licitação e sem cálculo definido para o reajuste de tarifas.
Ele atribui a crise a falhas da gestão do antecessor, Marcelo Crivella (Republicanos), e diz que as novas mudanças só foram possíveis após a debacle financeira e institucional das empresas de ônibus.
Três dos quatro consórcios que operam os coletivos entraram em recuperação judicial em função do congelamento da tarifa desde 2019 e da queda de passageiros causada pela pandemia do novo coronavírus.
Os principais empresários do setor também foram alvos de desdobramentos da Operação Lava Jato no Rio de Janeiro. As investigações apontaram a distribuição de mais de R$ 500 milhões em propina e caixa dois entre 2010 e 2016 pelo setor para membros do Executivo, Legislativo e Judiciário, num esquema iniciado na década de 1980, segundo as delações.
“Imagina fazer tudo isso num momento em que as empresas de ônibus eram mais bem conectadas nos diferentes segmentos do Rio? Hoje é mais fácil a negociação”, afirmou Paes, em maio, ao comentar as mudanças no setor.
O prefeito foi um dos delatados por empresários do setor. Ele nega as acusações.
A crise também atingiu o sistema ferroviário, cujo concessionário, a Supervia, também está em recuperação judicial. O setor, que transportou 8 milhões de passageiros em dezembro do ano passado, sofre com falhas de manutenção, interrupção e irregularidade de serviços.
O governador Cláudio Castro (PL) já descreveu o serviço prestado pela Supervia como “porco”. A gestão ainda não indicou soluções para o problema.
“Passando de uma postura conciliatória para outra punitiva, em abril o governador suspendeu as negociações com a concessionária Supervia, inclusive para ajustes da tarifa, e lançou, imediatamente, a Operação Estação Segura. O objetivo é fiscalizar o serviço e cobrar melhorias da concessionária”, afirma o governo estadual, em nota.
As falhas da concessionária já geraram R$ 9,3 milhões em multas do Procon desde abril, além de outros R$ 2,2 milhões de punição pela Agetransp (agência reguladora dos transportes) por investimentos previstos em contrato não realizados.
Para a coordenadora do Observatório dos Trens, Rafaela Albergaria, o estado tem responsabilidade pelos resultados da concessão.
“Há um descompasso no investimento e priorização do setor ferroviário. Isso está relacionado com os territórios por onde os trens passam. O ramal Belford Roxo é o pior, e passa justamente pela Baixada Fluminense, com territórios pretos e pobres”, afirma ela.
A rotina de atraso gera constrangimentos sucessivos a trabalhadores que dependem dos trens. A autônoma Janete Monteiro, 27, chega diariamente às 7h à estação Jardim Primavera, em Duque de Caxias, mas os atrasos a impedem de desembarcar às 9h na praça da Bandeira, na zona norte do Rio, onde trabalha numa pet shop.
“O patrão não gosta. Chegar no trabalho todo dia é muito ruim. Para isso tem que sair bem cedo de casa com a incerteza de que o trem vai estar funcionando naquele dia. Às vezes, a gente descobre na estação que não tem trem. Não tem previsão nenhuma, é muito ruim. ”
O setor foi o que menos recebeu investimentos para os Jogos Olímpicos. Foram R$ 1 bilhão para a reforma de estações e outros previstos na renovação da concessão até 2048 da Supervia.
O maior investimento, de R$ 10 bilhões, foi feito na ampliação do metrô de Copacabana até a Barra da Tijuca, passando pela área mais rica da cidade. As duas linhas do metrô, praticamente contínuas, cruzam a zona norte e transportaram 9,5 milhões de passageiros em dezembro do ano passado. É o que menos enfrenta problema atualmente.
Especialistas apontam a geografia da cidade como um adicional às dificuldades para a mobilidade dos moradores.
O centro, bairro que concentra a maior parte dos empregos, fica no extremo leste da cidade. As áreas que mais sofrem com transporte estão justamente no ponto oposto, na zona oeste, região mais pobre da cidade. Entre eles, uma geografia montanhosa, com dois grandes maciços (da Pedra Branca e da Tijuca).
“O Rio de Janeiro tem uma dificuldade geográfica, entre montanhas e lagoas. É um espaço muito confinado que dificulta as intervenções”, afirma Leandro Vaz, professor do Departamento de Construção Civil e Transporte da Uerj.
Diante da crise no setor, a transição energética para ônibus elétricos ficou para depois. A prefeitura adiou a intenção de incluir veículos desse tipo na licitação de compras para o BRT.
“Para fazer a adaptação da estrutura para elétrico, precisaríamos de um ano e meio. Achamos que não justificava em razão da emergência social que era o BRT. Estudamos incentivar uma renovação de frota para o elétrico no SPPO [“ônibus comuns”]”, afirmou Maína Celidônio.
A prefeitura também vai lançar até setembro um plano cicloviário, para definir as intervenções necessárias para o futuro. Também tem como meta até o fim de 2024 conectar todas as 266 estações do BRT, metrô ou trem com a malha cicloviária —atualmente são 54.
“A ideia é que ninguém mais possa fazer uma ciclovia da cabeça dela. Tem que seguir o plano”, disse a secretária.
Fonte: Folha de São Paulo, 15/06/2022
Foto: Brenno Carvalho (Agência O Globo)