É religioso: todo sábado, às nove da manhã, o contador aposentado Antônio dos Anjos Barbosa chega à estação de trens da Leopoldina. Tira da bolsa uma locomotiva em miniatura, alguns vagões (também em miniatura) e fica, até o fim da tarde, a admirá-los dando voltas numa pista com dimensão de 55 metros quadrados.
Barbosa é membro da Associação de Ferreomodelismo do Rio de Janeiro (Aferj), uma das três agremiações de aficionados por trens em miniatura da cidade. Fundada em 1986 numa sala térrea da Estação Leopoldina, a Aferj — que já nasceu com o nome errado (o correto seria ferromodelismo) — conta hoje com 32 associados, todos homens, que pagam R$ 150 de matrícula e outros R$ 30 mensais pelo direito de rodar seus trenzinhos na pista de cinco vias, esculpida ao longo das últimas duas décadas.
Dono de uma coleção de pelo menos cem peças, Barbosa varia o uso das miniaturas. Num sábado recente, levou uma cópia do Vera Cruz, trem de passageiros que costumava fazer viagens entre Rio, São Paulo e Belo Horizonte nos anos 1940.
— Já viajei nesse trecho, mas nunca nesse trem — contou. — Hoje, a linha não existe mais. De passageiros, a única interestadual que sobrou fica entre Belo Horizonte e Vitória. Andei nela há poucos anos. É linda.
Via de regra, amante de trem em miniatura nunca trabalhou com trem em grande escala. Dos 32 associados da Aferj, apenas um foi ferroviário. O restante tem conhecimento teórico — aprimorado, uma vez na semana, com os documentários sobre linhas férreas que passam na TV da associação (naquele sábado, o filme, sem legendas, era sobre as ferrovias alemãs).
Presidente da Aferj, o empresário aposentado Lúcio Moreira, de 66 anos, coleciona miniaturas desde os 29 anos de idade, quando comprou uma locomotiva inglesa. Precavido, se recusa a falar em números e valores (“Para não chamar a atenção”), mas afirma listar seus trenzinhos na declaração anual de imposto de renda.
— De vez em quando eu vendo uma parte da coleção. Como eu justificaria se ela não estivesse declarada? — pergunta.
Feita de plástico ou metal, miniatura boa é aquela que imita um vagão real na escala, na pintura e nos pequenos detalhes, como janelas, portas e assentos. Embora as locomotivas sejam elétricas (movidas a 12 volts, energia de uma bateria), algumas chegam a soltar vapor ou fumaça pela chaminé, para se aproximar dos exemplos reais.
No Brasil, há uma única empresa especializada no ramo, a Frateschi, criada em 1967. Suas peças vão de R$ 30 (vagão-tanque da Petrobras) a R$ 300 (locomotiva GE 5200). Há, ainda, réplicas de vagões de minério da Vale, de produtos químicos da Ultrafértil, ou de cimento da Ferrovia Paulista S.A.
— Isso é o brinquedo completo — explica o engenheiro de produção Marcos Cordeiro, de 49 anos, enquanto rebaixa as rodas de um vagão de minério, para deixá-lo na mesma escala do original. — Você monta uma maquete diminuta de uma paisagem que existe. Além disso, acaba se envolvendo com a história ferroviária do país. Não é só pegar um trenzinho e botar em cima do trilho para rodar.
Funcionário público aposentado, Almir Paes, de 74 anos, começou a se interessar por trens ainda na infância.
— Minha família ia a passeio para Barra do Piraí, e ficava numa casa que dava fundos para a linha férrea — lembra. — Eu ia até a estação para ver os trens manobrando. Lá era a zona de entrocamento de São Paulo, Rio e Minas Gerais.
Hoje, Paes diz repetir a experiência com suas réplicas:
— Gosto de ver o movimento da engrenagem, o ruído do motor, o som do sino da locomotiva. A gente vive um trem em miniatura aqui.
Na Aferj, cada associado tem direito a rodar seu trem por uma hora. As cinco pistas são paralelas, mas não interligadas. Ou seja: uma vez que o veículo está numa delas, cabe apenas aumentar ou diminuir sua velocidade, através de um controle de energia. O bom senso prega que miniaturas de trens de carga devem andar devagar, e réplicas de trens de passageiros (principalmente dos modelos europeus, como o TGV, que faz a viagem entre Paris e Londres) devem rodar no limite. Mas nada impede que se faça o contrário: independentemente da decoração externa, todos os trens têm motor e peso similares, e utilizam o mesmo tipo de trilho.
— Como o objetivo é parecer real, queremos que a velocidade fique na proporção do original — explica Antônio Barbosa.
Uma vez ao ano, ele e alguns dos associados da Aferj viajam para São Carlos, município da Grande São Paulo, para o encontro nacional de ferromodelistas. Promovido pela Frateschi, o evento conta com exposições de maquetes e concursos de locomotivas montadas artesanalmente. Perto dali, na capital paulista, fica a maior pista do país, da Sociedade Brasileira de Ferromodelismo. Já na Aferj, a última contribuição de peso à maquete foi uma réplica da ponte do metrô, que une as estações de São Cristóvão e da Cidade Nova.
Capitão de mar e guerra da reserva — e vice-presidente da associação — Márcio Miranda, de 73 anos, começou a colecionar em 1964, durante sua viagem de formatura da Escola Naval.
— Comprei uma locomotiva na Alemanha, da Märklin. Mas a manutenção era cara, e acabei deixando de lado — conta.
Hoje, ele tem uma coleção que soma quatro armários. Diz que a história do trem sempre esteve ligada “às facetas econômicas do país”.
— A malha ferroviária cresceu e decaiu com o ciclo do café. Depois foi por água abaixo com a construção de Brasília — lembra, citando números: — Atualmente, 34% do transporte nos Estados Unidos são feitos em rodovias. No Brasil, são 72%.
Essa realidade repercute na indústria. O país tem hoje uma única montadora de vagões e locomotivas, da General Electric, em Campinas.
— Mas ela só faz trem de pequeno e médio portes — lamenta Miranda. — Não tem demanda.
A história pode mudar caso, qual prometido em campanha, o governo federal venha a construir uma linha férrea expressa (o famoso trem-bala) unindo Rio e São Paulo. Na Aferj, a iniciativa é tida em alta conta, mas vista com descrédito.
— Torço para que a obra saia. Vai ser uma pena se o trem-bala não acontecer — diz, melancólico, Antônio Barbosa.
Já o presidente da associação, Lúcio Moreira, é corrosivo:
— O trem-bala pode até rolar, mas a Dilma não vai estar na presidência para ver.
Fonte: O Globo, 28/10/2012