O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva queria passear no trem da Transnordestina antes de deixar o Planalto, no apagar das luzes de 2010. Quase quatro anos se passaram e a ferrovia está mergulhada em problemas que colocam sua viabilização em um cenário sombrio. Obtido pelo Valor, um relatório interno da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), dona da obra, aponta inúmeras falhas no projeto e fala, inclusive, em inobservância da “boa engenharia”.
A obra da estrada de ferro vinha sendo tocada pela Odebrecht até setembro do ano passado, quando foi rescindido o contrato entre a empreiteira e a TLSA (Transnordestina Logística SA), subsidiária da CSN. Apesar de a Odebrecht não ter se manifestado publicamente sobre o desacordo, a inadimplência é apontada como a causa principal do rompimento. Passados mais de nove meses, a TLSA ainda não conseguiu retomar as obras.
Com pouco mais de 1,7 mil quilômetros previstos, a Transnordestina deveria ligar o município de Eliseu Martins, no interior do Piauí, aos portos de Suape, em Pernambuco, e do Pecém, no Ceará. Para os dois primeiros Estados, foram contratadas, respectivamente, as construtoras EIT e Civilport. Já o trecho cearense, o mais atrasado, não tem sequer uma empreiteira à frente. A TLSA encomendou orçamentos a Queiroz Galvão e Andrade Gutierrez, mas não houve acordo.
Assumidamente preocupado, o secretário de Infraestrutura do Ceará, Adail Fontenelle, disse ter informações de que a TLSA está finalizando a contratação de uma empreiteira e que as obras seriam retomadas em julho. Procurada pelo Valor diversas vezes nos últimos meses, a CSN se comprometeu a dar esclarecimentos, mas depois voltou atrás e optou por não fornecer nenhuma informação a respeito da obra.
Datado de janeiro de 2014, o relatório de análise crítica da ferrovia foi elaborado pela diretoria de projetos da TLSA e por consultores externos. O trecho analisado tem pouco mais de 400 km e liga as cidades de Trindade (PE) e Eliseu Martins (PI). Praxe neste tipo de empreendimento, o documento questiona o valor do investimento, dá sinal vermelho para a obra e recomenda que os trabalhos não sejam retomados antes do atendimento de uma vasta lista de adequações.
Foram reprovados, por exemplo, os projetos de terraplenagem, de drenagem e os estudos geotécnicos, avaliados como incompletos e, portanto, inválidos. “Desta forma, entende-se que o projeto tal como se encontra não atende às normas e nem a prática da boa engenharia podendo, caso seja implementado, induzir a futuros problemas”, alerta o relatório da consultoria WRC, anexo ao documento.
Os consultores recomendam à CSN a contratação de engenheiros permanentes em diversas áreas para reforçar a equipe da obra. Também é sugerida a contratação de uma gerenciadora de projetos para fiscalizar com mais eficiência o andamento e o custo dos trabalhos, bem como a ampliação da equipe de fiscais ambientais, insuficiente segundo o documento.
Orçada inicialmente em R$ 4,5 bilhões, a Transnordestina já foi reajustada duas vezes e está cotada hoje em R$ 7,5 bilhões. O relatório, porém, apresenta tabelas datadas de 2011 com cifras superiores a R$ 7,8 bilhões. Segundo apurou o Valor, a própria CSN tem dito a empreiteiros que a ferrovia não deve sair por menos de R$ 11 bilhões.
O relatório de análise crítica também faz uma série de ressalvas ao Capex, termo utilizado para definir o investimento total no empreendimento. De acordo com o documento, muita coisa ficou fora do cálculo do preço final, como projetos para passarelas de pedestres, pátios ferroviários, sinalização, instalações de apoio e manutenção, entre outros.
Também não foi contemplada a construção de uma estrada ligando Eliseu Martins à pera ferroviária, como é chamada a linha férrea utilizada para manobras dos trens. “Encontramos diversas evidências que comprometem a decisão do investimento. O problema se encontra na fonte de dados para elaboração do Capex; os projetos executivos estão incompletos, em processo de revisão ou por fazer”, acusa o relatório, que foi enviado ao ministro dos Transportes, César Borges.
Procurada, a assessoria de imprensa do ministério não se manifestou sobre o documento. A pasta informou que está mantido para setembro de 2016 o prazo para entrega da ferrovia, pactuado em setembro do ano passado entre governo federal e TLSA. No último balanço do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a Transnordestina aparece com o sinal amarelo, o que significa que o andamento do projeto merece “atenção”.
Questionado sobre a possibilidade de novos reajustes no custo do empreendimento, o ministério informou apenas que “o valor final da ferrovia é uma responsabilidade do concessionário, que arca com os custos e riscos do negócio”. Em março deste ano, no entanto, a TLSA recebeu um aporte de R$ 400 milhões da estatal federal Valec (ligada ao Ministério dos Transportes), que terá sua participação no negócio elevada para 25% do capital total da ferrovia.
De olho no voto dos nordestinos, o candidato do PSDB à Presidência da República, Aécio Neves, disse na semana passada que está preparando “um choque de infraestrutura” para a região. Entre as obras que promete acelerar, citou a Transnordestina, que a seu ver não vai ficar pronta no prazo anunciado. Ao lado do nordestino Eduardo Campos (PSB), os mineiros Aécio Neves e Dilma Rousseff vão disputar o direito de passear no que, pelo menos até agora, está longe de ser um “trem bão”.
Com obra, procura por direitos minerários sobe 700%
Apesar dos sucessivos contratempos, a Transnordestina está aguçando o interesse dos empresários do setor mineral, que viram aumentar a competitividade da região em relação aos demais projetos de minério de ferro no país. Desde 2007, pouco depois do início das obras da ferrovia, cresceu 700% o número de direitos minerários nos três Estados atendidos pela estrada de ferro.
Dados do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) apontam 2.606 direitos minerários ativos em um raio de 200 km do traçado da ferrovia. Desse total, 1.472 estão no trecho entre Eliseu Martins (PI) e Salgueiro (PE). Do município pernambucano até Pecém (CE) há 571 direitos minerários ativos e do mesmo ponto até o porto de Suape, outros 563.
Com capacidade para transportar 30 milhões de toneladas por ano, a ferrovia tem na indústria da mineração um de seus principais clientes. Além do minério de ferro, a Transnordestina deve transportar gipsita, calcário, frutas do Vale do São Francisco e soja da região conhecida como Mapitoba (Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia).
O primeiro acordo comercial foi fechado em 2011 pela Bemisa, mineradora controlada pelo grupo Opportunity, de Daniel Dantas, que pretende investir até R$ 4 bilhões na exploração de 15 milhões de toneladas anuais de minério de ferro no Piauí.
A própria CSN, dona da ferrovia, detém quase 200 direitos minerários nas proximidades da Transnordestina. A Vale possui alvarás de pesquisa minério de ferro no Ceará. O plano original da Bemisa previa o início das operações em dezembro de 2016, mas teve que ser readequado por conta do atraso nas obras da estrada de ferro.
A paralisação do projeto preocupa os investidores, que dependem 100% da Transnordestina para viabilizar os empreendimentos el var o produto até o porto. Sob a condição de anonimato, o executivo de uma mineradora resumiu a situação: “Diamante sai até de zepelim, mas minério de ferro precisa de ferrovia”.
Fonte: Valor Econômico, 23/06/2014