Ministério Público Federal diz que país já perdeu R$ 40 bilhões com malha ferroviária largada após privatização. Instituição afirma que 16 mil quilômetros de ferrovias foram desprezados e pede investigação ao TCU
O ex-mascate Marino Soffiati, 47, precisou de tempo para entender como 360 metros de trilhos desapareceram numa madrugada. Parado sobre o talude de brita vazio, onde um dia repousou o quilômetro 221 da estrada de ferro Cajati-Santos, Soffiati avistara apenas as marcas do maçarico no chão. Uma quadrilha muito bem entrosada retalhou e furtou 16 toneladas de trilhos naquela madrugada chuvosa. Três anos depois, o hiato no ramal ferroviário Cajati-Santos é um entre vários no trecho de 250 quilômetros de ferrovia abandonada, hoje sob os auspícios da ALL (América Latina Logística). O trecho, por onde circulavam minério e gente -como o ex-mascate Soffiati-, é apenas mais um retrato do completo abandono de 16.000 quilômetros de ferrovia no território nacional, um problema que só se agrava.
A ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) diz que dois terços das ferrovias do Brasil estão subutilizados ou abandonados. Nesta semana, a agência divulgará relatório indicando onde estão os 5.760 quilômetros concedidos, mas ignorados.
O Grupo de Transporte do MPF (Ministério Público Federal) estima que essa situação tenha produzido um prejuízo de R$ 40 bilhões ao patrimônio público do país. É essa cifra o tamanho do esforço que o país precisará fazer para construir o primeiro trem-bala brasileiro, entre Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro, negócio sob ameaça.
O caso do abandono das ferrovias está agora nas mãos do TCU (Tribunal de Contas da União). O MPF pediu ao órgão investigação sobre os contratos de concessão e o que chama de “dilapidação do patrimônio público”. O primeiro contrato que será visto é o maior, o da ALL. A meta do MPF é exigir que todas as concessões sejam reavaliadas pelo tribunal. “Começamos pelo contrato da ALL, mas o objetivo é que a investigação alcance todas as concessões feitas entre 1996 e 1998”, diz Thiago Lacerda Lopes, procurador e coordenador do Grupo de Transporte do MPF. A ANTT diz que o contrato é “frouxo” tanto para impor metas quanto para obrigar a ativação de trechos.
DESTRUIÇÃO
O direito de arbitrar sobre qual trecho explorar condenou ramais considerados pouco atrativos. A situação se agravou com o abandono, o que gerou um problema social espalhado pela faixa de domínio hoje sem mando. Em Itanhaém (SP), o mato, o furto e a ocupação irregular proliferam. A paragem do bairro Cibratel é agora o lar de Maria de Lourdes. Pela antiga estação, ela pagou R$ 17.000 a um ex-funcionário da Fepasa. “Era tudo o que tinha.” O produtor de banana Marcos Ribeiro, 36, critica o desleixo. O plantio ilegal da fruta domina a ferrovia e atrapalha seu negócio. Há anos, a área virou alvo de saqueadores. Gente que busca o ferro dos trilhos, a madeira dos dormentes e os cabos do velho telégrafo. A estrada de ferro que um dia transportou o agricultor Ribeiro, a dona de casa Maria de Lourdes e o mascate Soffiati perece no tempo.
Folha de São Paulo: 10/06/2016