A crise no sistema ferroviário teve início na segunda metade da década de 50, quando as companhias começaram a demitir funcionários e a transformar estações em simples pontos de parada de trem.
O cenário se acentuou no fim dos anos 70, quando mais de 200 estações foram fechadas pela extinta Fepasa (Ferrovia Paulista S.A.), e é um milagre que ainda existam duas rotas regulares de trens de passageiros no país.
As afirmações são do pesquisador Ralph Mennucci Giesbrecht, autor de quatro livros, três sobre ferrovias, e que há mais de 20 anos estuda o tema. Seu mais recente livro é “O Desmanche das Ferrovias Paulistas (1945-2017)”, em que aborda o declínio do meio de transporte que foi importante para o desenvolvimento econômico do país na primeira metade do século passado.
Leia, a seguir, principais trechos da entrevista do pesquisador ao blog.
Seu novo livro aborda o desmanche de um sistema de transporte que já foi muito importante e que, aos poucos, foi sendo deixado de lado, com a retirada de trilhos e o fechamento de estações. Por quais motivos chegamos a esse ponto?
No final dos anos 50 começou o processo de fechamento de estações. Elas eram fechadas e transformadas em paradas. Isso significava que a companhia ferroviária fechava, demitia todo mundo que estava ali, como chefe de estação e telegrafista, e dizia que o trem só pararia quando tivesse alguém para descer ou subir. Isso foi feito por todas, Paulista, Mogiana, Sorocabana, Central do Brasil. Após isso, elas foram abandonadas.
Esse processo começou como medida de economia, com as empresas alegando que estações pequenas não eram sustentáveis economicamente. Mas exageraram. No final dos anos 70, a Fepasa fechou mais de 200 estações e nos anos seguintes continuou fechando. Entre 1996 e 1999 visitei quase 200 estações e encontrei 3 que ainda funcionavam. Em péssimo estado.
Era difícil saber o que alegavam realmente para fechar, pois ao mesmo tempo em que fechavam uma estação com pouco movimento, desativavam outras que apresentavam bom fluxo.
Esse cenário dos anos 70, de fechamento em massa de estações, gerou queixas de usuários ou já era um sistema em declínio absoluto?
Não faz muito tempo essas estações ainda eram usadas por políticos. As empresas até escondiam de políticos que pretendiam fechá-las para não ter muita pressão, como a Fepasa fez a partir de 1976. Isso significa que, nessa época, ainda havia políticos achando que poderiam perder votos se suas cidades tivessem estações fechadas. Ou seja, não faz tanto tempo assim que as estações e o transporte de passageiros ainda tinham importância.
Até pouco tempo, anos 90, ainda existiam muitas estações com gente morando e pagando aluguel simbólico, tipo R$ 10 por mês, até que começou o programa de concessões do governo. As empresas que assumiram as ferrovias começaram a colocar essas pessoas para fora, pois avaliavam que isso seria um problema a mais para elas.
Uma das queixas em relação aos trens, e que se acentuou a partir das melhorias no sistema rodoviário, é que eles eram muito lentos e uma viagem de Santos a SP levava 1h40. Até que ponto a lentidão contribuiu para a troca dos trens pelas rodovias?
A lentidão foi um problema para o trem a partir do momento em que começou a existir ônibus nas estradas, que também passaram a receber melhorias. Os ônibus começaram em 1922, 1923 a fazer transporte por meio das jardineiras. Enquanto as estradas eram ruins, e foram ruins por muito tempo, isso não se evidenciou muito. Mas a partir da hora em que as estradas foram asfaltadas e mais bem conservadas, em que os carros foram barateando e em que os ônibus começaram a ter mais horários e velocidade, afetou bastante as ferrovias.
O curioso é que uma viagem de ônibus para o Rio, na virada para os anos 2000, levava mais ou menos oito horas. Era o mesmo tempo de viagem quando terminou o trem, em 1990. Quando a São Paulo Railway lançou o trem Cometa, em 1934, foi para combater o ônibus, que fazia a viagem um pouco mais rápida.
Mas, se pensarmos que hoje há congestionamento na Anchieta e em finais de semana o trânsito fica mais lento, dá uma sensação ruim quando vemos a linha do litoral entre Santos e Peruíbe desativada, num local totalmente plano, enquanto a rodovia que corre paralelamente a ela está com o trânsito travado. As pessoas não percebem isso e que poderia ser muito diferente.
Historicamente, a construção de ferrovias é algo demorado no país. Associações do setor apontam que quatro anos é considerado um prazo curto e que muitos investimentos são definidos para uma década. A falta de políticas públicas agrava isso?
O problema é que obras no Brasil, com trens e ferrovias, sempre foram assim. Desde a década de 1850, quando chega a primeira ferrovia, já havia atrasos. Provavelmente alguma tenha sido feita dentro do prazo, mas no geral todas as linhas chegaram muito depois do que deveriam ter chegado. O que mudou hoje é que existe uma bagunça maior. No papel, há órgãos que controlam as ferrovias, mas na prática nenhum deles resolve.
Há no país apenas duas linhas ferroviárias regulares de longa distância, a Carajás (Entre o Maranhão e o Pará) e a Vitória-Minas. Como o senhor avalia isso para um país da dimensão territorial do Brasil?
Acho um milagre ainda existirem. Mas ouço que a Vale [operadora das rotas] alega até que os trens dão lucro. Não sei, é possível. Ninguém colocaria 18 a 20 carros para correr se estivessem vazios. Por outro lado, os dois trens não deixam de ser uma propaganda, digamos, para a empresa, no sentido de fazer sua parte em relação ao assunto. No fim, era isso o que sempre valeu no transporte de passageiros ao longo da história.
Além desses dois trens, o país tem também mais de uma dezena de trens turísticos em operação, concentrados basicamente nas regiões Sudeste e Sul, que têm a melhor malha ferroviária. Por quais motivos isso nunca se modificou?
Sul e Sudeste sempre foram as regiões com melhor malha, incluindo aí CPTM, Supervia, Metrô. Há algo muito sazonal no Nordeste, como o Trem do Forró, e o restante [do país] não tem nada. Quando alguém começa [a oferecer rotas turísticas] faz a primeira, segunda viagem e desaparece. Há muito amadorismo nisso. A ABPF [Associação Brasileira de Preservação Ferroviária] tem um sistema que funciona bastante bem. Mas, antes disso, durante os primeiros 20 anos apanharam muito. O problema é que muitos que tentam fazer algo querem deixar de apanhar com dois anos de existência e não é assim que as coisas são. A manutenção de uma linha é muito cara. Se o trem circula no verão, o mato cresce muito, por exemplo, e isso gera custo. Por isso, iniciativas começam e acabam com uma rapidez enorme.
E tem outra questão, que é cobrar R$ 100 por viagem, muito caro para o brasileiro. Não é fácil viajar para alguns desses locais e até encontrar hotéis decentes e bons restaurantes em várias cidades com trens turísticos.
O estado contratou um projeto sobre a pré-viabilidade de colocar em operação o Trem Intercidades, entre São Paulo e Americana. É uma alternativa real para os usuários terem mais uma opção de transporte?
Duvido que esse trem saia do papel. Gostaria muito que saísse, principalmente porque é de linha, não turístico, mas sinceramente não acho que vá sair. Quando falam em estudar viabilidade, não entendo. Eles já têm na história 150 anos de viabilidade de um sistema que pararam de oferecer. Querem mais experiência do que isso? Agora eles têm o conhecimento de fazer sem cometer os erros do passado. E nem assim sai.
Fonte: Folha de SP, 29/07/2018
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