Logística triplica o custo do alimento

No plantio, o nível de sofisticação entre produtores americanos e brasileiros é praticamente o mesmo. Tanto que ambos países são grandes produtores de alimentos a um custo cada vez mais competitivo. Da porteira da fazenda para fora, porém, a história é outra. As diferenças são tão grandes que não é exagero dizer que a estrutura de transporte à disposição dos americanos está anos-luz à frente da oferecida aos brasileiros.

“As diferenças na logística são enormes e criam custos que afetam diretamente os ganhos dos produtores e o preço final dos alimentos produzidos no Brasil”, diz Roberto Pavan, presidente da Macrologística, consultoria especializada em logística de transporte.

Segundo um levantamento da Macrologística, de cada US$ 1 gasto por um brasileiro (o equivalente a R$ 2,30, pela cotação atual), cerca de US$ 0,08, ou mais R$ 0,18, serão gastos com o translado dos alimentos, da fazenda para indústrias, portos e supermercados.

Nos Estados Unidos, esse custo, segundo levantamento da Associação de Produtores de Milho de Iowa, equivale a quase um terço do brasileiro. De cada dólar desembolsado por um americano para pagar uma refeição, US$ 0,03 – ou apenas 3% do total – vão ser usados para cobrir o custo com o transporte dos produtos.

Na maioria das vezes, o peso desse diferencial no custo é lembrado pelas empresas como um prejuízo para a competitividade nas exportações brasileiras de produtos agrícolas. Mas, segundo Pavan, a diferença também chega à mesa de todos os brasileiros na forma de comida mais cara.

Uma comparação entre preços em mercados equivalentes, como São Paulo e Nova York, pode dar uma dimensão do impacto da logística no preço da comida. Os melhores produtos para revelar o peso do transporte são os básicos, que têm baixa carga tributária ou chegam a ser isentos de impostos – outro elemento que pesa no preço final no Brasil, principalmente de produtos industrializados.

A mais famosa cidade americana tem um custo de vida alto. Verduras, vegetais e frutas costumam custar caro por lá. Mas nesta semana, na Fine Fare, rede de Manhattan cujo padrão se assemelha ao do Pão de Açúcar na capital paulista, um pacote com 2,5 kg de batata inglesa custava US$ 1,99 (R$ 4,60). Em supermercados da zona oeste de São Paulo, o quilo da batata inglesa estava por quase R$ 5, o que elevaria o valor da mesma compra aqui no Brasil para R$ 12.

No FreshDirect, serviço de compras pela internet com entrega em casa que atende Nova York, o pacote de meio quilo de cenouras “baby” (miniaturas de cenouras, um produto mais caro) custava US$ 1,69 (R$ 3,89). No supermercado online do Pão de Açúcar, o pacote de 250 gramas, metade do pacote americano, saia por R$ 5,69 – ou 46% mais.

O trunfo dos Estados Unidos, segundo Pavan, é o valor do investimento na logística. “Os americanos investem o equivalente 4% do PIB em transporte e o Brasil investe 0,5%”, diz Pavan. “O programa de concessões veio para tentar aliviar essa distorção.”

O destino dos investimentos também faz diferença. Enquanto o Brasil passou décadas concentrado em rodovias, os Estados Unidos, apesar de abrirem autoestradas, investiram pesado em ferrovias e hidrovias. Hoje, as regiões produtoras contam não apenas com autoestradas, mas também dispõem de trilhos e de barcaças.

Da porteira para fora, EUA dão show

O americano Gordon Wassenaar e o brasileiro Modesto Felix Daga têm muito em comum. São fazendeiros apaixonados pela terra, plantam essencialmente grãos – milho, soja e trigo -, entendem muito sobre o agronegócio em seus respectivos países e também no país do outro, porque Wassenaar admira a agricultura do Brasil e Daga, a dos Estados Unidos. Além da fazenda, porém, não há semelhança que possa aproximá-los.

Wassenaar é fazendeiro em Prairie City, no Estado de Iowa. Se há algo que não o preocupa é como os seus grãos vão chegar a áreas industriais ou aos portos, apesar de viver a quase 1.700 km da primeira praia. “Não faltam nos Estados Unidos opções para escoar a produção”, diz com um sorriso largo. Daga, fazendeiro em Cascavel, no Paraná, está a 700 km do mar – menos da metade da distância do americano -, mas seu tom de voz expressa desânimo quando o assunto é colher e escoar a safra. “Você sabe, eu sei, todo mundo sabe: transportar produtos agrícolas no Brasil é custoso, moroso e cansativo.” A comparação entre a infraestrutura disponível é no mínimo constrangedora para o Brasil, que se autointitula celeiro do mundo.

Wassenaar conta com uma estrutura logística azeitada que começa no próprio quintal. A menos de 50 metros da porta dos fundos de sua casa estão três enormes tanques de silagem, capazes de armazenar toda a sua produção. Assim, ele vende quanto quer, quando quer.

Todos os vizinhos têm armazéns como ele. “Os pequenos agricultores, que não podem ter um armazém próprio, se reúnem e investem em armazéns coletivos”, diz Wassenaar. Dentro das propriedades, a capacidade de armazenagem dos Estados Unidos é de 1,8 safra. Ou seja: quase duas safras podem ser estocadas nas próprias fazendas.

Diferenças. É uma realidade muito diferente da brasileira. Apenas 17% de uma safra podem ser estocados nas propriedades. A capacidade total do País corresponde a 68% da safra. Daga planta pouco mais de 500 hectares de soja e trigo e não tem armazém. “O financiamento nunca foi atraente porque o custo era alto e o prazo para o pagamento, curto”, conta ele. “Melhoram as condições recentemente e estou avaliando, mas ainda preciso vender na colheita.”

É fato que Daga não vai se preocupar em conseguir o transporte. Quem comprar os seus grãos se encarrega de levá-los. Mas o comprador vai descontar do preço da saca de Daga todo o custo adicional que for encontrando pelo caminho. O primeiro deles é o adicional do frete durante a colheita, quando faltam caminhões para atender toda a demanda. “O preço final que eu vou receber é a diferença do preço da saca e o custo do transporte até o porto.”

Há muitas cooperativas com silos no Paraná, mas a grande central de estocagem é o próprio terminal da única ferrovia local, a Ferroeste, controlada pelo governo do Estado. Lá operam 13 empresas e cooperativas. No pico da colheita, principalmente de soja, a entrada fica tomada de caminhões. Não raro os silos lotam e os veículos e carga permanecem estacionados no local, como se fossem armazéns sobre rodas. Boa parte do trabalho ainda é manual. Para se ter uma ideia, um funcionário coleta pessoalmente as amostras de semente e empacota em envelopes de plástico.

Para os padrões brasileiros, a malha ferroviária no Paraná é um luxo. A pública Ferroeste se interliga aos trilhos da privada ALL, que chegam ao Porto de Paranaguá. Poucas áreas agrícolas têm tal privilégio no País. Mas as diferenças de idade e de especificações técnicas dos diferentes trechos faz do trajeto, até o navio, uma odisseia.

As composições que deixaram Cascavel devem fazer uma espécie de conexão em Guarapuava, onde termina o trecho público e começa o privado. Nesse ponto, é preciso trocar a locomotiva. Entre a saída de uma e a chegada da outra podem transcorrer dois, às vezes três dias. As duas empresas assinaram um acordo para permitir o trânsito das composições e evitar as paradas já para a próxima colheita de soja.

Na altura de Curitiba, costuma haver nova troca de locomotiva, o que demanda ao menos mais 24 horas de espera. O traçado até o porto foi aberto no tempo do Império. É tortuoso e íngreme, o que exige atenção na descida. Ao final, de Cascavel a Paranaguá, a viagem segue a uma velocidade média de 15 km por hora. Segundo estudo divulgado pela Federação da Agricultura do Estado do Paraná, a tarifa do trem equivale a 75% do valor do frete do caminhão. Assim, dependendo do tempo de espera, compensa colocar a carga na rodovia mesmo.

No porto, o desembarque é às antigas: operários batem nos vagões com bastões de borracha para que a trepidação faça com que todos os grãos caiam para fora.

Outra realidade. Os grãos de Wassenaar, em Iowa, cumprem um ritual bem diferente. São retirados da fazenda por veículos próprios ou da associação de produtores. Seguem direto para silos também construídos e mantidos pela associação. Essas centrais de silagem ficam no máximo a 20 quilômetros das fazendas e estão a poucos metros dos trilhos da ferrovia. Iowa tem dez centrais de silagem. A propriedade de Wassenaar está a menos de cinco minutos de uma delas.

A pesagem da carga e a coleta de amostras é mecanizada. A armazenagem dos grãos nos silos não leva três minutos: os caminhões graneleiros estacionam sobre a área de estocagem e o fundo da caçamba se abre, despejando o conteúdo. Há apenas um trilho ao lado dela, mas três companhias operam a linha, o que gera competição.

A ferrovia, que existe desde o século 19, era usada pelos avós de Wassenaar nos anos 1920, quando ele se instalaram na mesma terra onde ele vive hoje. Mas o sistema foi modernizado. Os trens trafegam a uma velocidade média de 70 km/hora, mas chegam a 100 km/h. No destino, os vagões são virados por sistemas informatizados para descarregar o conteúdo nos armazéns sem que seja preciso parar a locomotiva – o desembarque é feito com o trem em movimento. A economia do trem em relação ao caminhão depende da distância. Até Cedar Rapids, onde há várias indústrias de alimentos, o trem custa metade do que custaria o caminhão. Até Morales, no México, a diferença é maior. Cada saca sai por US$ 7,88 no caminhão e US$ 1,25 no trem. Mas os grãos são transportados aos portos pela hidrovia do Mississipi, com redução de 80% em relação à rodovia.

Transporte falho tirou R$ 1,6 bi do MT

Como o Brasil produz grãos principalmente para a exportação, quanto mais longe uma fazenda estiver do mar, maior será o custo do transporte para o produtor. Não é difícil perceber que o Estado mais punido nesse caso é justamente o coração da produção de grãos do Brasil, o Mato Grosso.

Pelos cálculos de Luiz Nery Ribas, diretor técnico da Associação de Produtores de Soja e de Milho do Estado do Mato Grosso (Aprosoja-MT), o custo local é alto. Para transportar uma saca de soja de Sorriso, um centro produtor localizado no coração do Estado, distante quase 2 mil km do mar, até o Porto de Santos, será preciso arcar com um custo de frete de quase R$ 8,60 por saca transportada.

Nos Estados Unidos, os fazendeiros de Iowa, Illinois e outros Estados agrícolas do Meio-Oeste americano que quiserem exportar os seus grãos pelos portos do Golfo do México vão desembolsar uma parcela ínfima desse valor: apenas US$ 1,20, ou cerca de R$ 2,80. “Na safra passada, o Mato Grosso exportou cerca de 3 milhões de toneladas de soja”, diz Ribas. “Isso significa que os produtores do Estado deixaram de receber, ou perderam mesmo, cerca de R$ 1,6 bilhão para cobrir os onerosos custos do frete rodoviário – foi dinheiro subtraído da renda da agricultura e da economia local que poderia ter sido revertida para o comércio e para a modernização da atividade.”

Segundo Ribas, essa conta vai subir na próxima colheita, porque já se espera uma nova safra recorde. “Teremos mais gastos desnecessários com uma logística falha.”

Na virada de 2012 para 2013, mais uma safra recorde congestionou a entrada rumo aos portos como poucas vezes se viu na história do embarque de grãos. As filas foram tão persistentes e longas que a direção dos principais portos exportadores de grãos, Santos e Paranaguá, criaram uma regra nova para receber a carga: só aceitam caminhões que fizerem o agendamento pela internet.

“A medida pode até reduzir a exposição dos portos a críticas na mídia, mas não vai resolver o problema porque a soja vai ser estocada nos caminhões do mesmo jeito e ficar em algum lugar das estradas”, diz Roberto Pavan, presidente da consultoria Macrologística.

Prioridade. Na avaliação de Pavan, o prejuízo com a falta de infraestrutura de transporte poderia ser um pouco menor se os produtores tivessem armazéns para estocar a produção e poder escoar as safras gradativamente ao longo do ano. “Uma boa estrutura de silos evitaria a disputa pelo caminhão durante a colheita, o que pressiona o preço dos fretes e congestiona as estradas”, diz Pavan. “Como duplicar rodovias, construir ferrovias e ampliar portos são obras de longo prazo, a prioridade do governo para contornar a falta de infraestrutura no transporte, pelo menos no curto prazo, deveria ser construir o maior número possível de silos.”

Fonte: O Estado de S. Paulo, 10/11/2013

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